ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 22 Janeiro a Abril de 2014
 
   
 
   
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Nau de Itaguaí: Loucura e Ciência


Ship of Itaguaí: Madness and Science

 
     
 

Rafaela Brandão Alves
Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás, Mestrado em andamento pelo programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás
Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise Seção Goiânia
E-mail: brandaoalvespsi@gmail.com

Leilyane Araújo Masson
Graduação em Psicologia pela Pontíficia Universidade Católica de Goiás Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Goiás
Doutorado em andamento pela Universidad de Ciencias Empresariales y Sociales de Buenos Aires, Argentina
Professora de Psicopatologia na Universidade Federal de Goiás
Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo E-mail: leilyaneomasson@gmail.com

 

Resumo: O presente artigo discute a temática da loucura e da ciência com base na obra O Alienista (1882) de Machado de Assis, dialogando com autores como Foucault via pela qual também aborda o par poder e saber. Nesse percurso, o processo de internação, o surgimento da ideia de loucura e sua contextualização nos dias atuais merecem destaque. A partir da relação ciência, poder e loucura cabe pensar as consequências para o sujeito que não se sabe louco ou são e, ao fim, frente ao poder normatizador dos diagnósticos, questiona-se o que seria a loucura.
Palavras-chave: Loucura, ciência, poder.

Abstract: This article discusses the theme of madness and science based on the novel The Alienist (1882) by Machado de Assis, conversing with authors such as Foucault through which is also addressed the pair power and knowledge. In this ride, the process of admission, the emergence of the idea of madness and its context these days are worth mentioning. From the relationship between science, power and madness one comes to think of the consequences for the subject who does not know if he himself is sane or crazy and, at the end, in the face of the normalizing power of diagnoses, questions the meaning of madness.

Keywords: Madness; science; power.

 
 


Introdução

Discorrer sobre o conto O alienista de 1882 do escritor Machado de Assis é uma tarefa desafiadora, tanto pela densidade da obra, quanto por sua exploração recorrente em trabalhos acadêmicos. O interesse despertado pelas palavras irônicas e pela importante temática abordada justificaria tal recorrência. A relação entre loucura e ciência é o pano de fundo de toda a movimentação na cidade de Itaguaí e da mesma forma na saúde mental nos dias atuais. Desta forma, será representado pelo romance machadiano um fenômeno longe de estar ultrapassado: a categorização da loucura e normatização da saúde pelo saber psiquiátrico.

Com o propósito de iniciar essa discussão faz-se necessário uma rápida contextualização da obra, como algumas palavras sobre o autor. Machado de Assis é considerado um dos maiores escritores do Brasil por obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1981) e Dom Casmurro (1899), porém suas produções não se restringem a romances, há em sua bibliografia contos, poesias e teatros. O olhar crítico, as palavras afiadas e ao mesmo tempo sutis são marcas de sua escrita. O escritor, negro, gago e epiléptico, se impôs em uma sociedade burguesa e conquistou seu lugar. Ser epilético não compõe sua biografia como apenas mais uma informação, mas recebe destaque nessa obra, pois os surtos epilépticos eram considerados componentes de uma das formas da loucura, a “frenesi” do corpo, como mostrou Foucault em A História da Loucura (1972). Assim, seria uma possibilidade que o tema da loucura o incomodasse tanto pela sua condição de crítico social, mas principalmente pela sua proximidade com o estigma de ser louco.

Cabe questionar, afinal, que sujeito não se sente ameaçado pela possibilidade de ser um “mentecapto”, um lunático, um louco? Sobre que bases frágeis se sustentam os rótulos do que seria o “normal” é uma das temáticas abordadas por Machado de Assis nessa obra. Tais bases, mesmo em um campo essencialmente humano e social, apontam para o predomínio de uma ciência positivista que ao procurar por leis universais e objetivas dicotomiza o normal-patológico, razão-desrazão e saúde-doença. É na ficção da cidade de Itaguaí, com os loucos ou “o” louco, a Casa Verde e O Alienista que se dá a viagem do leitor a um período de fabricação da loucura no Brasil, de construção das casas de Orates e de questionamento de uma ciência impositiva, que enlouquece até mesmo seu representante, “[…] quem nos afirma que o alienado não é o alienista?” (MACHADO, 1882/1998, p. 60). Assim, a tensão da obra não estaria em definir a melhor classificação da loucura, mas em fugir dessa regra normatizadora apontando para as bases do poder em que se alicerça a psiquiatria. Nas próximas linhas serão discutidos os impasses do que seria a saúde mental para o saber médico, em um diálogo com os personagens do romance e com o clássico A história da Loucura de Michel Foucault (1972). Ainda, pautando-se em concepções psicanalíticas, será questionada a (im)possibilidade dos diagnósticos reducionistas que acabam por desconsiderar o lugar de sujeito daquele que sofre.
Nada é por acaso O conhecimento popular tem a potência de guardar uma imensidão de sentidos em poucas palavras ou expressões e muitas vezes finalizam discussões por serem de certa forma inquestionáveis, pois é certo que na vida nada é por acaso. Acreditando nisso parte-se do pressuposto que os nomes e termos usados por Machado de Assis não foram aleatórios, mas escolhidos e, portanto, têm algo a dizer, “[…] muitas vezes as palavras perdem seus significados ligados ao código da língua, ganhando novas significações.” (JORGE e FERREIRA, 2005, p. 49).
Simão Bacamarte, nome nada comum para um protagonista. Essa estranheza suscita a procura pelo sentido camuflado na escolha dos mesmos, considerando de antemão a já conhecida genialidade do autor. “Simão” é um personagem bíblico Simão Mago que tenta comprar dos apóstolos o poder de operar milagres, e “Bacamarte” com sua origem no francês braquemart significa arma de fogo. Ao se atentar a tais minúcias poderia supor que os nomes foram escolhidos com precisão, uma vez que no contexto da narrativa ambos se encaixam perfeitamente ao perfil do alienista.
Simão era “[…] o maior dos médicos do Brasil” (1982/1998, p. 33) que havia se entregado de corpo e alma à ciência, dizendo ser a saúde da alma a ocupação mais digna do médico. Ele se colocou no papel de messiânico da ciência que iria encontrar o remédio para a loucura e, assim, como o nome diz, operaria milagres.
O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este é o mistério do meu coração. Creio que com isto presto um bom serviço à humanidade. (MACHADO, 1982/1998, p. 37)
O Alienista operaria milagres aos cidadãos de Itaguaí, lhes daria o “santo remédio”, haveria assim, a possibilidade de cura da loucura, concepção esta distante daquela presente na Idade Média, momento em que a loucura não era um diagnóstico médico, mas um castigo operado “Ela pune através das desordens do espírito, as desordens do coração.” (FOUCAULT, 1972, p. 38).
Desse modo, ao se propor um remédio para tratar a loucura há aí uma transformação histórica em que a ciência se coloca acima da religião, não há mais demônios ou espíritos, mas a perda do juízo. A separação entre a razão e a desrazão é uma herança do pensamento cartesiano, onde se o homem é capaz de pensar já não é possível estar fora do juízo da razão “[…] mas sim por que eu, que penso, não posso estar louco.” (FOUCAULT, 1972, p. 46). Por fim, o domínio da ciência sobre a religião é claramente demonstrado na narrativa pelos diálogos entre Simão e o padre Lopes, este ao tentar fazer investimentos sobre alienista é repreendido ou desconsiderado:
Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma intenção de riso, em que o desdém vinha casado à comiseração; mas nenhuma palavra saiu de suas egrégias entranhas. A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, - com tal segurança, que a teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra. (MACHADO, 1882/1998, p.47)
“Bacamarte” ao fazer referência à arma de fogo, diz do poder que é concedido às mãos do alienista que impõe um regime de cárcere privado ao colocar 4/5 da população na Casa Verde, casa construída por ele para agasalhar os doudos. Esse regime cria o terror na cidade de Itaguaí, pois a determinação de quem era demente era de poder de Bacamarte, e este considerava que “[…] a insânia abrangia uma vasta superfície de cérebros.” (MACHADO, 1982/1998, p. 45). Ou seja, toda a população estava sob domínio da arbitrariedade do olhar do alienista, “Ainda que de fato não se consiga nunca esgotar seus fenômenos e suas causas, ela pertence ao pleno direito ao olhar que a domina.” (FOUCAULT, 1972, p. 169).
O poder que é dado e legitimado à Bacamarte é incorporado por este, compondo seus gestos, atitudes e marcando seu corpo, “Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais” (MACHADO, 1882/1998, p. 49). Punhais que se figuram à arma de fogo, pois condenam e buscam seu alvo com precisão, como assim operava o alienista em sua perseguição obsessiva aos dementes da cidade. “[…] Não imaginava a existência de tantos doudos no mundo.” (MACHADO, 1882/1998, p. 37).
Além da escolha do nome Simão Bacamarte, chamam atenção os nomes usados pelo autor para se referir aos doentes mentais, pois se refere a eles no decorrer da obra como dementes, loucos, deserdados do espírito, doudos, afetados do conhecimento, enfermos, lunáticos e mentecaptos. São palavras que carregam significados que possuem toda uma história de construção e representação. Um exemplo seria o termo lunático, que se refere à afetação dos loucos de acordo com a fase da lua. Atualmente, estes termos estão em desuso e
CliniCAPS, Vol 8, nº 22 (2014) – Artigos
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são criticados pelos sistemas de classificação que regulamentam a saúde, dado que estes defendem uma postura de neutralidade e imparcialidade, o que os leva a propor denominações como transtornos e distúrbios, assim ressalta Roudinesco (2000):
Por outro lado, na tentativa de evitar qualquer polêmica, as diferentes versões do DSM acabaram por abolir a própria ideia de doença. A expressão distúrbio mental serviu para contornar o problema delicado de inferiorização do paciente, que, se fosse tratado como doente, imporia o risco de exigir indenizações do praticante do DSM e até de mover processos judiciais contra ele. (p.49) Além destes termos, tidos como eticamente incorretos aos dias atuais, não há na obra O alienista o uso de palavras que se referem à internação. Machado de Assis opta por usar “agasalhar” e “recolher” ao se referir à ação do alienista de levar os doudos à Casa Verde, “Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes tiveram ocasião de ver o carinho paternal e a caridade cristã com que eles iam ser tratados.” (MACHADO, 1882/1998, p. 36). Ante tal constatação poder-se-ia supor que o autor não se utilizou do termo “internação”, para que a tensão da obra não se deslocasse para as condições de tratamento que os doentes recebiam na Casa Verde. Sua crítica seria em relação à concepção positivista de ciência, da qual Bacamarte é representante.
Nos dias atuais, falar em internação remete à discussão sobre o isolamento, maus-tratos, exclusão e alienação dos internos, por ser este o imaginário que carrega a palavra internação. Foucault (1972), por exemplo, utiliza o título “A grande internação” em seu livro A História da Loucura, para traçar a história de construção dos manicômios, casas de correção e asilos. Assim, para Machado de Assis, o foco estaria na forma como a ciência se apresentava em sua época e suas consequências à sociedade e não necessariamente em como se dava a terapêutica dos internos.
Seguindo o foco da discussão apontado pelo autor, relação ciência e poder, o próximo tópico se propõe a pensar sobre o lugar de domínio historicamente conquistado pela ciência, e ainda, os possíveis impasses de uma vida toda cerceada pelos parâmetros científicos.
A vida sem ciência é tanque sem água
Esse provérbio português é uma criação anônima, como a maioria dos provérbios, e é a expressão de um dito popular que por ser a representação de aspectos universais da vida, perdura de geração em geração. O provérbio acima citado foi aqui resgatado por explicitar o poder da ciência, pois sem ela de nada adiantaria a vida, e esse sentido se conforma ao que vem sendo discutido sobre a supremacia da ciência e o controle por ela operado. É justamente para esse fenômeno que Machado de Assis volta sua atenção e produz a ficção de Itaguaí.
Bacamarte é o expoente dos princípios da ciência, ela é a sua vida é “água de seu tanque”, assim, o médico delira não por sair dos enquadres da ciência, mas por ter se tornado seu dependente, "Entregou-se de corpo e alma ao estudo da ciência" (MACHADO, 1882/1998, p.33). Bacamarte permanece indiferente, "[…] frio como um diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica.” (MACHADO, 1882/1998, p. 53). Até a escolha de sua esposa se baseou na objetividade e no seguimento cego das doutrinas da razão: D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e excelente vista, estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além, dessas prendas, - únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, de longe de lastimá-las, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte. (MACHADO, 1982/1998, p. 34) É pelo excessivo poder concedido à ciência que o alienista, no decorrer da narrativa, vai se aproximando daqueles que havia considerado loucos, vai se perdendo na razão louca e se configurando como o verdadeiro insano: “Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo.” (MACHADO, 1882/1998, p.35). Além do que, suas ações passam a incorporar aqueles traços que em outro momento foram utilizados pelo próprio Bacamarte para servir como traços de identificação da insanidade, “Mal dormia e mal comia; e ainda comendo, era como se trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questão, e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra a D. Evarista.” (MACHADO, 1882/1998, p. 40). Sua postura científica também foi se modificando com o tempo, se submetendo mais e mais aos preceitos da racionalidade científica, “Compreende-se que pela teoria nova bastava um fato ou um dito, para recolher alguém à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito ao passado e ao presente.” (MACHADO, 1882, p. 79). Essa procura por um método que abarque a prática sem se afastar da teoria é um dos pilares em que se ancora a ciência moderna, e sendo Durkheim (1895) um dos representantes do positivismo também propõe:
Se encontrarmos um critério objetivo, inerente aos fatos mesmos, que nos permita distinguir cientificamente a saúde da doença nas diversas ordens de fenômenos sociais, a ciência será capaz de esclarecer a prática, sem deixar de ser fiel ao seu próprio método. (p.51) Outro representante, considerado o pai do positivismo, diz: “[…] trás o normal e o patológico às mesmas leis, para assim agindo sobre uma alcançar a outra, criando, a possibilidade de tratamento-cura.” (COMTE, citado por COELHO E ALMEIDA FILHO, 1999, p.17). Assim, é no momento em que a razão cria a loucura, dando-lhe o status de doença que se admite a possibilidade de tratamento, abrindo as portas para o desenvolvimento do saber psiquiátrico, e principalmente o poder dos médicos.
Bacamarte representa esse poder quando classifica três modos de loucura e possíveis meios de cura. Primeiramente a loucura correspondia ao desequilíbrio da razão, depois como o equilíbrio perfeito e por último como o perfeito desequilíbrio. Para esta última classificação, porém, não encontrou o tratamento e o próprio analista seria seu único representante, “Dizem os cronistas que morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada.” (MACHADO, 1882/1998, p. 87).
Machado de Assis, ao trabalhar com as três possibilidades de diagnóstico, nas quais o alienista transita durante seu trabalho de classificação, faz uma crítica à verdade absoluta e universal que defende a ciência positivista. No mesmo caminho de crítica, Freud (1927) discorre sobre os limites de uma ciência que se pauta pela verdade universal, rígida e congelada:
As transformações da opinião científica são desenvolvimentos, progressos e não revoluções. Uma lei que a princípio foi tida por universalmente válida, mostra ser um caso especial de uma uniformidade mais abrangente ou é limitada por outra lei, só descoberta mais tarde; uma aproximação grosseira à verdade é substituída por outra mais cuidadosamente adaptada, a qual, por sua vez, fica à espera de novos aperfeiçoamentos. (p.70)
As transformações teóricas pelas quais passaram as teorias diagnósticas de Bacamarte são consequências da sobreposição teoria e prática, sobreposição esta negada desde o início da atuação do médico. Não obstante, o alienista se fez objeto de sua própria teoria ao final quando se colocou como o único louco existente em Itaguaí, “A questão é científica, dizia ele, trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática” (MACHADO, 1882/1998, p.87). Machado de Assis, assim, vem com muita sutileza mostrar a postura dos intelectuais de sua época que defendiam cegamente uma racionalidade científica. Esta quando tomada radicalmente, tal como retratado no personagem machadiano, pode limitar o acesso à realidade, incorrendo em desequilíbrio e insanidade:


Tal é a pior loucura do homem: não reconhece a miséria em que está encerrado, a fraqueza que o impede de aproximar-se do verdadeiro e do bom; não saber que parte

da loucura é sua. Recusar esse desatino que é o próprio signo de sua condição, é privar-se para sempre do uso razoável da razão. (FOUCAULT, 1972, p. 33)

Visitantes sempre dão prazer, senão quando chegam, quando vão embora.
A confusão em Itaguaí se instaura no momento da chegada do “maior dos médicos” com sua ambição de estudo e cura da patologia cerebral. Antes de sua vinda à cidade os cidadãos não faziam caso dos doudos, uns viravam andarilhos nas ruas e outros ficavam reclusos para não envergonharem os familiares, Machado de Assis (1882) representa o cenário da época em seu romance:
Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta na rua. (p. 35)
Esse contexto é representativo do período histórico vivido no Brasil, que se distanciava da realidade europeia contemporânea, pois se lá havia o silenciamento da loucura, aqui havia a loucura silenciosa. As famílias ricas mantinham seus loucos em casa, já os loucos pobres ficavam a vagar pelas cidades, e sua sobrevivência era garantida pela caridade pública. Eram alvo de deboche e hostilidade da população (PASSOS, 2009).
É, no entanto, com o advento do hospital, manicômio, asilo, casa de correção ou qualquer estabelecimento de recrutamento do louco e do saber psiquiátrico, que a loucura se institui como doença. O que não significa dizer que a loucura não existia ou que ela tenha passado a existir desde então; mas que ela foi construída, a fábrica foi o hospital e o operário o psiquiatra (GARCIA-ROSA, 2001). É neste contexto que começam a surgir no Brasil os hospícios, com o primeiro a ser inaugurado em 1852 e já em 1895, 56 instituições haviam sido criadas, quantitativo este representativo da fala de Passos (2009): “Passa-se a ver os loucos como resíduos da sociedade e uma ameaça à ordem pública.” (p.105).
A Casa Verde seria a casa de Orates de Itaguaí, “Era na Rua Nova, a mais bela rua de Itaguaí naquele tempo, tinha cinquenta janelas por lado, um pátio no centro e numerosos cubículos para os hóspedes.” (MACHADO, 1882/1998,p. 36). Mas, o que diferencia esta casa de outros locais de recrutamento dos loucos, é que esta é centralizada e não isolada nas periferias da cidade como a maioria, cujo objetivo é a exclusão dos doentes e a proteção dos não loucos.
Todavia, a segregação e o isolamento social são realidades também na Casa Verde, pois os doentes ficavam ali enclausurados até o fim do tratamento. A reviravolta que Bacamarte promove nos ares da cidade é consequência de sua nova teoria com a ampliação do território da loucura, onde “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.” (MACHADO, 1882/1998, p. 45). A partir de então, instaura-se o terror na cidade, os cidadãos passam a temer sair nas ruas, as mulheres rezam pela volta dos maridos, quem podia emigrava, “Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doudo.” (MACHADO, 1882/1998, p.56). Foi assim que a Casa Verde se tornou o oceano na ilha de Itaguaí.
Todo esse quiproquó na cidade é consoante ao poder conferido ao alienista, que sob a tutela da lei e da ciência acabou por instaurar a “bastilha da razão humana”. A população ensaiou uma tentativa de rebelião, pois já não acreditavam no diagnóstico do médico, viam-no como um déspota da ciência que fazia a todos de cadáveres de seus estudos. Tendo o barbeiro como líder conseguem derrubar a câmera, mas quanto ao alienista não tiveram tanto sucesso:
- Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes. (MACHADO, 1882/1998, p. 62)
Assim, é com esse discurso que o alienista se consagra e impõe suas vontades. Ocupa o lugar do saber que lhe seria legítimo por estar de posse da razão, enquanto aqueles que lhe opõem seriam insanos. Esse poder diretamente relacionado ao saber se evidencia desde a fabricação da loucura, pois a demanda social por respostas objetivas e aparentemente inquestionáveis se faz como combustível para que até os dias atuais esse saber domine os centros de discussão na saúde. Assim, a produção da loucura implica tanto um conjunto de práticas de dominação e controle, como a elaboração de um saber. Onde muitas vezes a verdade desse saber raramente é colocada em questão. A intenção seria em justificar o conjunto de práticas que se articulam no interior do espaço institucional (GARCIA-ROZA, 2001).
Voltando à ficção do alienista, os revoltosos não obtiveram resposta com a tentativa de conseguir apoio na câmera para a derrubada de Bacamarte e a destruição da Casa Verde, pois a política estava ao lado da ciência, esta que não estava ao lado da política, mas acima, pois vereadores foram depostos de seu cargo e até mesmo reclusos na casa. Enfim, a ciência que seria legitimada pela política, estaria ela mesma no domínio de se “deixar” ser legitimada. “A câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.” (MACHADO, 1882/1998, p. 58). A espada velada carregada pela ciência é questão abordada por Foucault (1972), pois ao falar em loucura, fala-se automaticamente do poder que a criou e que a sustenta:
Soberania quase absoluta, jurisdição sem apelações, direito de execução contra o qual nada pode prevalecer- o Hospital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem da repressão. (p. 50)
Nos parâmetros deste poder ocorre “A Grande Internação” em Itaguaí, em que 4/5 da população estava “agasalhada” na Casa Verde, “De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. (…) Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação.” (p. 37). Essa concentração de loucos na instituição não é uma criação do escritor, mas a explicitação de uma realidade que tem suas marcas na história desde a criação do primeiro hospital, o Hospital Geral na França, como retrata Foucault em A História da Loucura (1972):
Qual era, portanto, a realidade visada através de toda essa população, que quase de um dia para o outro, viu-se reclusa e banida de modo mais severo que os leprosos? Não se deve esquecer que poucos anos após sua fundação, o único Hospital Geral de Paris agrupava 6000 pessoas, ou seja, cerca de 1% da população. (p. 55)
Assim, é com a internação que surge uma nova classe social, a classe abastarda dos alienados. Estes são vítimas até os dias atuais de estigmas e preconceitos, são filhos do paradigma da normalidade que reina hegemonicamente sob as prerrogativas dos “ajustados”. É contra a exclusão e institucionalização dos doentes mentais que desde os anos 70 representantes da sociedade lutam pela cidadania e respeito a estes doentes através da Reforma Psiquiátrica e o Movimento da Luta Antimanicomial. “A luta é pelo direito de cidadania do doente mental, de receber assistência adequada, de ter a garantia de participar da sociedade e de não se tornar depósito, o que ainda é uma realidade brasileira seja nos grandes hospícios públicos ou em clínicas privadas e conveniadas.” (MEDEIROS e GUIMARÃES, 2002).
Foucault (1972) em sua criticidade aponta para uma alienação que não é apenas geográfica, mas principalmente simbólica, “Ela é posta a distância; distância que não é apenas simbolizada, mas realmente assegurada, na superfície do espaço social, pelo cerco das casas de internação.” (p.105). Para o autor, o internamento seria uma forma não de esconder, mas de apontar para o que é heterogêneo, eliminando tais elementos que lhe são nocivos. Por fim, “A loucura é a forma mais pura, mais total do quiproquó: ela toma o falso pelo verdadeiro.” (FOUCAULT, 1972, p. 41). Como então saber quem é o louco? Aquele que a cria? Aquele que a teme? Seria possível pensar um parâmetro de normalidade?
Preso por ter cão, preso por não ter cão
A confusão na cidade de Itaguaí em que ora se colocava um na Casa Verde ora se tirava outro, e ainda ora se colocava e tirava o mesmo, foi o reflexo de uma confusão maior: a desordem na cabeça de Simão Bacamarte. Este, ao se deparar com a estatística de 4/5 dos cidadãos estarem reclusos, colocou todos para fora e promoveu a revisão de sua teoria:
[…] que desse exame e do fato estatístico resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto. (MACHADO, 1882/1998, p. 76)
Esse pensamento do alienista de acreditar que por a maioria ter sido considerada louca, ela passa a não ser louca, é presente também na teoria do sociólogo positivista Durkheim (1985), pois para este seria normal o que é geral, assim foi proposto em sua obra As regras do método sociológico onde o normal guarda a concepção de generalidade. Ou seja, se um fato social é encontrado em todas as sociedades de todos os tempos, então ele é normal.
Em meio a seus delírios, Bacamarte começa a alcançar o “plus ultra!” de sua teoria, que então não haveria um único doudo em Itaguaí, mas essa possibilidade faria toda sua doutrina psicológica cair por terra e para não perdê-la, decide então, que ele deveria ser o único louco da cidade, “Itaguaí não possuiria um único cérebro consertado? Esta conclusão tão absoluta, não seria por isso mesmo errônea, e não vinha, portanto, destruir o largo e majestoso edifício da nova doutrina psicológica?” (MACHADO, 1882/1998, p.86).
O impasse a que chegou Bacamarte é o questionamento da padronização de uma norma, uma vez que a média não seria capaz de estabelecer o normal e o anormal para um indivíduo. A norma seria sempre do sujeito, de acordo com aquilo que é adaptativo ou não às suas condições de vida. “Cada indivíduo teria a sua própria concepção do que seria normal para si.” (COELHO e ALMEIDA FILHO, 1999, p. 19). Assim, o alienista se depara com os limites de ou todos serem loucos ou não haver nenhum louco, nesse mesmo sentido acrescenta Coelho e Almeida Filho (1999):

A impossibilidade de definição da medida de normalidade, acima ou abaixo de qual se apresentaria o patológico, poderia significar a ressurreição da ideia de perfeição, de saúde ideal, e implicar tanto a possibilidade teórica de existir apenas doentes, quanto a de eles não existirem. (p. 18)
Com fins de salvar sua teoria, Simão defende que seria ele o único caso de perfeição moral, que deveria então se aposentar na Casa Verde, e estudar sua cura. Contudo, ao se colocar como perfeito e tentar se aproximar da razão, estaria na verdade se distanciando a passos largos da então almejada racionalidade, como propõe Foucault (1972) se utilizando das palavras de Montaigne:
A presunção é a nossa doença natural e original. O homem é a mais calamitosa e frágil dentre todas as criaturas, e a mais orgulhosa. Ela se sente e se vê aqui alojada pela lama e pelo excremento do mundo, amarrada e pregada ao pior, depois morta e atolada como parte do universo, no último andar do abrigo e o mais distanciado da abóbada celeste, com os animais da pior condição das três, e vai-se plantando pela imaginação acima do círculo da lua e pondo o céu sob seus pés. É pela vaidade dessa mesma imaginação que ele se iguala a Deus. (p. 33)
É este então, o fim do protagonista da obra machadiana, que no decorrer da narrativa passou de o melhor médico do Brasil, para o “terrível médico” alcançando ao final o status ao qual tentou se distanciar durante toda a obra, o de único louco existente até então em Itaguaí. Foucault (1972), portanto, não errou ao dizer:
Afastar-se da razão sem o saber, por estar privado de ideias, é ser imbecil; afastar-se da razão, sabendo-o, porque se é escravo de uma paixão violenta, é ser fraco; mas afastar-se da razão com confiança, e com a firme persuasão de estar obedecendo à razão, é o que constitui, a meu ver, o que chamamos de ser louco. (p. 186)
Conclusão
O percurso deste artigo foi construído pelo diálogo entre pensamentos de teóricos e a representação de aspectos históricos através da ficção de Itaguaí. Foi explorada, assim, a potência da arte em atravessar seu contexto de criação, bem como de alcançar o leitor, por vezes, de modo mais direto e claro que linhas conceituais. Ainda, chama atenção a atualidade de um tema problematizado há mais de cem anos atrás que é pauta de discussões que extrapolam o campo da saúde, pois se aqui a loucura foi a faísca, o gatilho em si é a posição de poder doutrinário ocupado pela ciência, o que não se circunscreve ao campo da saúde.
O poder do diagnóstico, desde a consolidação da psiquiatria, se encontra sob domínio dos médicos e, assim, provavelmente perdurará por anos. O espaço para classificações do sofrimento estará sempre aí para quem quiser se saber louco, depressivo, estressado, bipolar, viciado, enfim, para qualquer quadro nosográfico haverá um encaixe

“Os poderes de decisão são entregues ao juízo médico: apenas ele nos introduz no mundo da loucura. Apenas ele permite que se distingam o normal do insano.” (FOUCAULT, 1972, p. 127).
Cabe questionar ainda sob que bases fortes se sustentam a fábrica de transtornos e por que meios ela conquista seus vigorosos adeptos. Há claro, talvez o principal dos agentes, o mercado e os lucros farmacêuticos ligados a cada novo diagnóstico que a ciência „descobre?. Mas, pensando no sujeito, seria o enquadre de indivíduos em uma massa homogênea, por compartilharem semelhantes sintomas, uma necessidade do sujeito de pertencer a um grupo, mesmo que a um grupo de doentes? O isolamento e a diminuição de relações afetivas estariam possibilitando a arquitetura do mercado em produzir tais meios de identificações? “Somos depressivos”, “Também tenho transtorno bipolar”.
Tantos sintomas nomeados e medicados, não seriam eles, soluções encontradas ao modo de cada um de suportar as frustrações impostas pela civilização? Não seriam formas de obter resquícios de prazer? De acordo com Freud (1909), os indivíduos adoecem quando por obstáculos exteriores ou ausência de adaptação interna, lhes falta na realidade a satisfação das necessidades sexuais. Refugiam-se, então, na doença para com o auxilio dela encontrar uma satisfação substitutiva.
Mas tais questões apontam para outro tópico a ser desenvolvido em um próximo texto, pois, no presente artigo, foi objetivo sublinhar a onipotência da razão científica a despeito das singularidades dos sujeitos. Estes se tornam quantitativos em estatísticas para pesquisas de mercado e pesquisas científicas e, desse modo, persiste a díade ciência e poder. Sem um prognóstico positivo para o seu fim.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, J. M. M. (1882/1998). O Alienista. São Paulo: Ática.
FREUD, S. (1909/1987) Cinco Lições de Psicanálise In: Edição Standart das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.
GARCIA-ROSA, L. A. (2001). Freud e o Inconsciente – 18 ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
MEDEIROS, S. M. & GUIMARÃES, J. (2002). Ciência e Saúde - vol. 7, n. 3, p.571-579.
ROUDINESCO, E. (2002) Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

FOUCAULT, M. (1972). História da Loucura: na Idade clássica; [tradução José Teixeira Coelho Neto]- São Paulo: Perspectiva. 9 ed.
Recebido em: 15 de Setembro de 2015 Aceito em: 28 de Outubro de 2015


 
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Revista N° 22
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