ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 18 Setembro à Dezembro de 2012
 
   
 
   
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Uma psicose e sua metáfora pela via do amor

A psychosis and his metaphor by way of love

 
     
 

Pâmella Fernandes Freitas
Acadêmica do curso de graduação de Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais
E-mail: pamellaffreitas@gmail.com


Resumo: Tomando emprestada a noção de elemento proposicional de Frege, a psicanálise diz que diante a foraclusão do Nome-do-Pai, o sujeito pode se estabilizar a partir de um significante constante que escreve sua relação com o gozo. Morel (1999) identifica o recurso a esse mecanismo no delírio de Schreber ao apontar que o presidente se inscreveu em uma função de gozo com duas variáveis: ser o (x) que falta ao gozo do Outro, (y). Assim, a ideia invariante, ou o elemento invariável, é a de que falta algo ao gozo do Outro, e é neste lugar que Schreber se coloca, através da variável x. Na clínica das psicoses é importante que o analista se ocupe em identificar qual é o elemento invariante na história do sujeito. A partir do qual é possível localizar qual o motivo do desencadeamento e o que promove sua estabilização. Foram tendo essa importância no horizonte que se realizaram os atendimentos feitos a uma paciente marcada pela estrutura psicótica, que encontra um ponto de estabilidade na medida em que constrói uma metáfora pela via do amor.
Palavras-chave: Psicose, metáfora, frase proposicional, estabilização, amor.

Abstract: Borrowing the notion of propositional element Frege, psychoanalysis says that before the foreclosure of the Name of the Father, the subject may stabilize from a significant constant writing his relationship with the enjoyment. Morel (1999) identifies the use of this mechanism in Schreber's delusion by pointing out that the president signed into a function of two variables with joy: be (x) is lacking in the jouissance of the Other, (y). Thus, the invariant idea, or invariable element is that missing something to the enjoyment of the Other, and it is in this place that Schreber arises through the variable x. In the clinical treatment of psychosis is important that the analyst engages in identifying what is the invariant element in the history of the subject. From which you can find out the reason of triggering and promoting its stabilization. It was with this importance is performed on the horizon that the calls made to a patient characterized by psychotic structure which meets a point of stability in that constructs a metaphor by means of love.
Keywords: Psychosis, metaphor, prepositional phrase, stabilization, love.

 
 

 

A psicose da paciente

Diante a questão sobre os motivos que levaram a paciente até o Serviço de Psicologia, muito rapidamente esta esclareceu sobre sua perturbação: não sabia o que significavam seus brancos e temia ficar louca. Ao longo das sessões, a paciente apresentou a morte de seu pai como um acontecimento de singular importância em sua história. Ouvindo seus ditos e de sua mãe, entendemos que o falecimento deste homem foi o motivo desencadeador de sua psicose. Ao dizer sobre ele, S. o apresentava como aquele que se mantinha ao seu lado em todos os momentos. Era o pai que, durante sua infância, protegia ela e os irmãos de uma mãe psicótica e devoradora. Além disso, o dizer de S. parecia anunciar uma relação quase de um duplo com este homem. A paciente contava que estava com ele em todos os momentos e era somente em sua companhia que ambos faziam uso de bebida alcoólica e de fumo.

Maleval (2003 apud Henriques, 2010) identificou, como consequência de uma falha no enodamento dos três registros psíquicos, a prevalência de identificações por via do imaginário, culminando em uma propensão do sujeito de buscar sustentação para o seu eu através de imagens especulares – restrição do eixo narcísico a-a’ do esquema L lacaniano.

Em “De uma questão preliminar...”, Lacan assinala que para impedir a falha da fantasia fundamental, que arrisca deixar o sujeito sem orientação na existência, o psicótico procura por qualquer identificação que lhe permita assumir o desejo da mãe (LACAN, [1959], p. 572). (...) Ao não se orientar sobre um ideal comandado pelo significante mestre, o sujeito encontra-se perdido em sua própria existência, alienando-se de bom grado ao outro especular. Tais sujeitos aproximam-se do modo de funcionamento “como se”, descrito por H. Deutsch, tendo como ponto comum entre si a espantosa plasticidade das identificações, algo semelhante ao que Miller designou por “ser puro semblante” (MILLER et. al., [1999], p. 29). (HENRIQUES, 2010).

Considerando a necessidade dessa ancoragem na imagem do outro, na forma de muletas imaginárias, entendemos que era a relação de S. com seu pai que a mantinha organizada. Parece que ocupar a posição de mulher amada por este homem era o que fazia o Nome-do-Pai da paciente, lhe possibilitando receber uma identidade a partir daí.

A psicose parece ter se desencadeado quando S. se viu diante do real da morte do pai, o que a fez cair do lugar de sujeito amado a tornando vítima de fenômenos elementares, como ver e falar com o pai morto, além de uma perda da realidade, ficando diversas vezes com um branco. Nesses momentos não conseguia entender o que se passava em seu cérebro, ficava confusa, não conseguia raciocinar e temia cometer uma passagem ao ato.

Foi diante essas manifestações que os familiares de S. a levaram para um hospital psiquiátrico, onde iniciou, pela primeira vez, a utilização de medicamentos, que a própria paciente decidiu interromper depois de certo período. Após a interrupção, S. iniciou uso abusivo de álcool e disse que a bebida impedia que os fenômenos elementares a acometessem. É possível neste ponto apontarmos que o uso da bebida atualizava, para a paciente, a presença do laço que esta tinha com o pai, o ressuscitando de alguma forma em sua embriaguez.

Depois de um tempo após a morte do pai, S. iniciou relacionamento com um homem, de quem engravidou. Ao noticiá-lo sobre a gravidez, ouviu deste homem que ele era casado e que não a amava, não indicando a intenção de abandonar a esposa para constituir uma nova família. A mãe da paciente esclareceu ao analista esse episódio, dizendo acreditar que foi ouvir que não era amada o que fez a filha, mais uma vez, se desestabilizar. Novamente, após ser abandonada pelo companheiro, S. intensificou o uso de álcool.

Feita tal recuperação da história da paciente, com Lacan, entendemos que o delírio psicótico pode ser vislumbrado como a construção de um sinthoma-suplência à foraclusão, como a instauração de um Nome-do-Pai alternativo que compensa a falha do nó-borromeano, no qual os três registros não foram devidamente enlaçados. Isso quer dizer que, quando Lacan instaura a segunda clínica, há a pressuposição de que pode haver uma estabilização da estrutura quando o sujeito inventa algo capaz de orientá-lo diante sua existência (Santana, 2010), ao que Frege dá o nome de frase proposicional.

Tal como o Nome-do-Pai – que promove a entrada no simbólico -, a metáfora delirante, ou a frase proposicional, possibilita a indução de efeitos de significação outra, o que promove uma ordem no significante, permitindo assim que o sujeito psicótico possa ter acesso a uma significação, mesmo que seja a não-fálica. Nesse sentido, possibilita uma estabilização, ainda que precária (HENRIQUES, 2010).

Se eu puder ousar, utilizarei esta metáfora: algumas gotas de cola ou mesmo dois ou três pedaços de fita duréx podem ser suficientes. R, S e I parecem se sustentar bem juntos, até demais. (...) Mas, esta ilusão, geralmente, não pode durar muito tempo, nem resistir a uma situação realmente conflituosa. (SKRIABINE, 2009, p. 9-10 apud HENRIQUES, 2010).

A partir disso, podemos apontar que S. construiu para si uma suplência via metáfora delirante, assumindo em uma função – tal como na lógica proposicional -, a posição imaginária da mulher que é amada por um homem (y), que, assim como indica Henriques (2010), visa colocar o imaginário ali onde falta o significante primordial, possibilitando o laço social e a estabilização.

A estabilização de uma psicose: o amor que aprisiona

A posição imaginária construída por S. aproxima-se de um postulado erotomaníaco. Nessa medida, o amor viria como um regulador da existência do sujeito. É o que é possível apontarmos na história de S. A criação da metáfora de ser a mulher amada por um homem, lhe proporcionava um visível apaziguamento das ideias delirantes e mesmo dos fenômenos de perda da realidade - o branco. Assim, a foraclusão do Nome-do-Pai parece ter seus efeitos amenizados a partir da cristalização de uma crença inabalável de que “o outro a ama” (BRESSANELLI, 2007).

Tal crença erotomaníaca leva o sujeito a estabilizar toda sua existência em torno dessa paixão e deste objeto de amor, único que interessa, passando a se conformar e a responder integralmente às suas demandas. Isso quer dizer que o sujeito psicótico é confrontado com um Outro que provoca sua alienação àquilo que parece lhe exigir, enquanto ocupa a posição de objeto a.

Lacan (1957-1958/ 1999, p. 490, tradução nossa) escreve: “Ali onde o Nome do Pai falta [...] o desejo do Outro, especialmente da mãe, não está simbolizado”. Não simbolizado, ressalta Soler (2004), não quer dizer que ele não exista (FERRARI, 2009).

Ao falar de um desejo do Outro que não é simbolizado, talvez queira se dizer que não é possível dialetizar as demandas que vêm do parceiro amoroso do psicótico. Nessa medida, não há como deixar de corresponder, exatamente, ao que este parece exigir. É preciso que o psicótico responda totalmente ao que lhe é pedido, assim, o que acontece com o próprio sujeito, nesta parceria, é que este “passa a ser o que responde ao desejo do Outro não simbolizado, realizando o objeto a do Outro, sendo objeto de gozo, real, do Outro.” (SOLLER, 2004, apud FERRARI, 2009). Como uma última consequência, o que se percebe é que em seus laços amorosos, o psicótico, assim como nossa paciente, encontra uma relação de complementaridade, em que só é possível dizer de si e encontrar uma estabilização se estiver condicionada à presença e à certeza do amor do Outro.

É assim, a partir da construção de um sistema explicativo que localiza S. de maneira vinculada a um homem, que a paciente conquistou sua estabilização, ao se convencer de ser amada, constituindo com isso, uma resposta ao que se impõe como enigma sexual. A partir deste ponto, “o romance e seu objeto de amor passam a ser as únicas causas que movimentam sua vida. Em determinados momentos, toma sérias medidas em nome desse amor.” (grifos nossos, BRESSANELLI, 2007). Tais medidas de amor do psicótico se exemplificam em algumas cenas, por exemplo quando a paciente tem atitudes agressivas contra o amado que a abandona e à sua mulher, ou quando, ao se ver grávida, por atribuir ao bebê a responsabilidade do impedimento de seu romance, o rechaça.

Assim, o amor, ao tomar a forma erotomaníaca, apresenta a mulher como serva do parceiro, sacrifício que lhe possibilita obter o que lhe é dado pelo amor, como uma compensação narcísica (Santana, 2010). Nessa medida, a única possibilidade para S. é encarnar, ser possuída pelo significante ser mulher amada por um homem, sendo, como indica Miller (apud QUINET, 1990, p. 53), exemplo da notação S1/(S), por ser cavalgada por tal significante sem qualquer mediação.

O que Lacan (apud MILLER, 1999) localiza para nós é que aqui é possível indicarmos S. como uma verdadeira mulher lacaniana, quer dizer, a mulher perdida que exige que seu parceiro seja sua bússola, aquele que lhe oferece qual semblante deve ser assumido, seu homem-medida, tal como seu pai o foi em um primeiro momento.

A estabilização de S. pela via do amor

Bressanelli (2007), ao questionar sobre do que se trata no amor, vem nos responder indicando a tendência do sujeito a uma tentativa de fazer um só, de formar um Um. Isso nos coloca a questão se é em busca dessa tentativa, como uma forma de se estabilizar enquanto sujeito identificado a algo, que S. se oferece como mulher amada, submetida a um Outro que dela possa gozar.

Talvez a resposta a essa questão seja um ressoante sim, na medida em que, ainda que tal solução não seja, incondicionalmente, sempre bem sucedida – considerando que esses homens eleitos como bússola e medida por S. podem abandoná-la a qualquer momento -, consegue, mesmo que por tempo curto e indeterminado, a estabilização da paciente, lhe possibilitando a construção de laços mediante uma percepção de si de maneira completa, como um Um.

Após o último surto, S. conheceu um novo homem, seu atual companheiro. É por ele que a paciente deixou de fazer uso de bebida alcoólica, se esforçando para atender a tudo que este lhe demanda. Tal informação deve ser escutada com devida atenção, pois aqui parece se confirmar que a presença de um novo homem que a ama, pode promover uma separação, ou um distanciamento – mesmo que momentâneo – de uma dependência de S. quanto ao pai morto e à função que a bebida parecia cumprir - enquanto tentativa de suprir essa ausência -, quer dizer, função de a manter fixada enquanto duplo ou objeto a desse pai.

Nesse novo relacionamento, mais recente e que, por isso mesmo, se apresentava em todas as sessões, foi possível percebermos como a organização da vida da paciente se construiu a partir da medida deste homem. Para isso, S. protegia seu enlace com o marido, abrindo mão mesmo da filha, afastando-a por pedido desse homem que demandava a ela que amasse somente a ele e a mais ninguém. Assim, à semelhança do Presidente Schreber, a nova situação de S. parece confirmar a teoria de que, diante a impossibilidade de ser o falo que falta à mãe – que por ser psicótica não foi inscrita pela falta -, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens (LACAN, 1957-58b, p. 572 apud GAMA, 2008), sendo assim, amada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRESSANELLI, Juliana. A erotomania como resposta psicótica aos impasses do amor. Dissertação de Mestrado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.

FERRARI, Ilka Franco. Acerca do amor e algumas de suas particularidades na psicose. In Arquivos Brasileiros de Psicologia, v.61, n.3, 2009.

GAMA, Vanessa Campbell da. Das fórmulas da sexuação ao empuxo-À- Mulher. In. Revista Eletrônica do Núcleo Sephora. Vol.3, n.6. Mai/Out 2008.

HENRIQUES, Rogério Paes. A psicose e seus modos de sexuação. Texto apresentado In IV Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental e X Congresso Brasileiro de Psicopatologia, 2010. Disponível em: https://www.sigaa.ufs.br/sigaa/public/docente/producao.jsf?siape=1313509

MILLER, Jacques-Alain. Un répartitoire sexuel. In La Cause freudiene, Revue de Psychanalyse, n. 40, Janvier, 1999.

MOREL, Geneviève. A função do sintoma. Revista de Psicanálise, ano VI, n.11. Bahia: Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise, p.4-27, 1999.

QUINET, Antônio. Clínica da psicose. 2ª Ed. Salvador: Fator, 1990.

SANTANA, Vera Lúcia Veiga. A psicose e sua relação com a loucura da mulher.In Opção Lacaniana online nova série. Ano 1, n.2. Julho 2010.

 

Recebido em Junho de 2014
Aceito em Julho de 2014
 
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