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INTRODUÇÃO
O século XX foi um marco na inversão da lógica inaugurada pela emergência da autoridade médica conferida à "idade de Bichat". Foi um século em que o desbravamento intelectual crítico em torno da medicalização da vida possibilitou um novo universo de abordagem e intervenção, dentre outros campos, sobre o problema da loucura, antes relegado ao estigma dos espaços hospitalares que, com sua roupagem médica a partir do século XIX, doravante o ato pineliano, instaurou definitivamente o poder disciplinar como modo de arregimentação do louco.
Não sem razão, no rol deste desbravamento, Michel Foucault (1954/1984) apontou a descontinuidade entre a medicina anatomo-clínica e a velha "medicina das espécies". Do ponto de vista histórico esta última, após a intensa transformação na metodologia sobre a investigação das doenças orgânicas, desapareceu, dando lugar à Anatomia Patológica e à Epidemiologia, o que elevou a medicina a um status de autoridade política e social no século XIX e XX (FOUCAULT, 1963/1994). Com efeito, da "medicina das espécies" restou apenas a lógica classificatória, bem como naturalizadora da doença no universo restrito da alienação mental e da psiquiatria moderna. A medicina das espécies se tornou herança fundamental do alienismo que fundou a medicalização da loucura no século XIX, bem como a psiquiatria contemporânea cujo mote de intervenção se pauta na abordagem nosográfica e psicopatológica sobre a questão da loucura (FOUCAULT, 1954/1984).
Também nada ao acaso é o fato de Foucault localizar na prática da própria medicina das espécies a invenção do tratamento moral que, no fio contraditório da prática classificatória, interveio na fundação do manicômio, fazendo funcionar ali, definitivamente, o poder disciplinar (FOUCAULT, 1973-1974/2010).
Reinscrito sob a égide da autoridade médica do século XIX, o hospital geral reverte, com o manicômio, seu espaço de origem: uma moral excludente cuja insígnia constitui o "espaço natural" dos pecadores, dos insensatos e dos desonrados. O manicômio atualizou, sob a rubrica da medicalização, a aniquilação do louco sob os auspícios de sua bestialidade, tributária do discurso clerical e do racionalismo cartesiano que conjurou, durante séculos, o louco à condição pura do erro (FOUCAULT, 1972/2001).
Nesse contexto em que a sociedade moderna deu saltos em torno da metodologia científica, o tratamento moral, cunhado por F. Pinel (1800-1801/2007) como tentativa de modificação do delírio e do comportamento desviante do louco ante a nova liberdade social e
política pós-revolução francesa, é nada mais do que a face medicalizada do domínio institucional do louco que, desde o século XVII, o conjurou à condição do cárcere. E Foucault aponta: a psiquiatria deu novas faces ao domínio institucional do louco, e não domínio científico da loucura.
Também no rol do pensamento moderno, em torno de cem anos depois do ato pineliano, surgiu a psicanálise, cuja penetração fez-se valer pela inovação do ato de escutar, dando ao "doente" a palavra, bem como a articulação de um saber (inconsciente) que se engendra pela fala do próprio "doente", e não pelo poder de um "mestre". Em que esses cem anos diversificam? Diríamos, em torno da posição de autoridade.
Tomada por Foucault (1973-1974/2010) como uma "sobremedicalização", a psicanálise se acha, nada obstante esta afirmação, entre as formas mais contundentes de ruptura com o discurso médico. É o que trataremos de demonstrar, questionando esta afirmação de Foucault, e situando a importância da psicanálise na lógica da desmedicalização hoje. Ou seja, se o pensamento de Foucault assume inalienável importância para o avanço das concepções sobre o problema das instituições da loucura - ecoando na desconstrução do saber psiquiátrico e da medicalização da vida na sociedade moderna - faz circular a ideia de que psicanálise não supera a medicalização, ou se desdobra a esta, fazendo supostamente referendar o exercício de poder mediante a transferência, na forma de uma "sobremedicalização" (FOUCAULT, 1973-1974/2010).
Indo a fundo nesta análise, trata-se não apenas de debater e questionar a atenção foucaultiana a respeito das práticas de sobremedicalização, mas de sustentar a hipótese de que a psicanálise e seu ato fundante, traçado pela invenção da escuta analítica, foi o primeiro e por isso mesmo o principal mote de desbravamento, no século XX, para o que veio a se denominar desmedicalização. Com efeito, apesar das dissonâncias encontradas entre diferentes concepções inscritas hoje neste campo, a proposta aqui em causa tem por finalidade situar o lugar e o papel da psicanálise nos movimentos de desmedicalização da loucura desde o século XX, a partir de um questionamento sobre a presença do discurso psicanalítico no processo de Reforma Psiquiátrica hoje, bem como do delineamento psicanalítico aos quais muitos dos dispositivos de saúde mental aderem: como se sustenta a aplicação psicanalítica nos Centros de Saúde Mental atuais, muitas vezes majoritária, se os CAPS se constituíram, ao longo da história do Brasil, como centros de atenção inspirados na Psiquiatria Democrática Italiana? Se os CAPS surgiram no Brasil com base no modelo dos centros de saúde mental italianos, de que forma o discurso analítico adentra hoje os CAPS, estes funcionando muitas vezes de maneira tão intrínseca a uma clínica ampliada de cunho psicanalítico (BEZERRA Jr., 1996)?
Nossa hipótese é de que a entrada do discurso psicanalítico nos Caps não emerge de uma mera empreitada dos psicanalistas no campo da saúde mental, arvorando-se a ofertar solução ao problema da loucura, mas encontra respaldo na sustentação mesma da invenção freudiana que é, em seu ato, desmedicalizante.
A autoridade médica no século XIX
Tomando como ponto de partida desta discussão a investigação sobre a constituição da autoridade médica, veremos que esta se levantou após a queda do antigo regime. Isto se acha intimamente articulado aos fatores intrínsecos à nova organização social, bem como institucional, no novo sistema liberal do século XIX pós-revolução francesa. Do ponto de vista institucional, o hospital deixa de ser o espaço jurisdicional dos "desonrados" (criminosos, doentes venéreos, vagabundos e, logicamente, loucos), passando a ser ocupado pela nova medicina anatomo-clínica (FOUCAULT, 1963/1994). A loucura passa a ser objeto da medicina mental alienista, que vem a se transformar na psiquiatria, e o criminoso, sob o regime da jurisdição prisional, passa a ser objeto da medicina criminológica.
Com efeito, a medicina ganhou um status de autoridade a partir da lógica liberal do novo regime contratual, assumindo um papel social e político antes inexistente. Tal status de autoridade se constituiu doravante as mudanças no método de investigação das doenças, com o surgimento da Anatomia Patológica. De fato, os tabus religiosos sobre a abertura dos cadáveres perdem força, o que permite a investigação médica sobre a doença e o organismo, elevando a medicina a uma posição de autoridade sobre conhecimento do corpo e da vida. É nesse contexto de mudanças estruturais no campo social, político e religioso que a Anatomia Patológica surgiu com seu direito de acesso aos cadáveres para estabelecer conhecimento das doenças orgânicas, bem como dos processos fisiológicos que as engendram. Com efeito, a doença, a partir deste momento, passa a ser concebida não mais como uma "espécie", mas como processo intrínseco à própria fisiologia orgânica (FOUCAULT, 1963/1994). A Anatomia Patológica assume então papel de autoridade no novo modo de conceber a doença numa perspectiva processualista, o que imputa à medicina a função de enunciar o conhecimento verdadeiro sobre a doença, a saúde, a cura, o bem-viver, etc. Esse contexto, somado ao fortalecimento da epidemiologia, eleva a medicina a uma posição de autoridade clínica, social e política, a partir do momento em que se torna o discurso que detém a
"metodologia eficaz" para o conhecimento da verdade das doenças. Nessa contextualidade é o olhar que assume primazia, a partir do momento em que o método anatomo-clínico se constitui sob a "garantia" de um suporte perceptivo. Foucault destaca esse "primado do olhar" – marca do método anatomo-clínico – como um dos mais importantes fatores de sustentação da autoridade médica no século XIX: "O olhar se realizará em sua verdade própria e terá acesso à verdade das coisas, se se coloca em silêncio sobre elas, se tudo se cala em torno do que vê (FOUCAULT, 1963/1994, p. 122).
A verdade sobre a doença, agora com suporte perceptivo, emancipa uma nova distribuição da vida, que passa a se modular sob o império do discurso médico: novo "clero do corpo", ensejando todo um prelúdio à disciplinarização desse corpo na sociedade moderna, deixando à Igreja apenas a incumbência de uma orientação algo "secundária" sobre a vida humana.
É o que Foucault demonstra, denominando a medicina moderna de "Clero do corpo", à medida que assume uma autoridade antes sustentada pelo discurso religioso. Somado à organização da epidemiologia, cuja intervenção tornou a medicina um campo intimamente ligado à distribuição social e à organização do Estado liberal, este fator faz produzir, na sociedade, uma relação com a medicina de caráter estruturante, à medida que esta assume condição de ditar as normas para a sustentação da vida, da sociedade e da saúde, tornando-se uma "polícia de todos os setores da salubridade" (FOUCAULT, 1963/1994). Este processo fortalece o discurso médico na relação com os aspectos decisivos da organização clínica, hospitalar, social, estatal e política, produzindo uma progressiva "medicalização da vida humana" (FOUCAULT, 1963/1994).
No campo psiquiátrico, o discurso médico ganha também relevo, contudo de forma diferenciada e, diríamos, caucionada pela autoridade clínica da anatomia patológica. Com efeito, o ato pineliano promoveu a sequestração do louco mediante a lógica do isolamento terapêutico. Com seu "Tratado médico-filosófico sobre a alienação mental" Pinel (1800-1801/2007) aparece como um pesquisador que vem dar solução para o problema da liberdade do louco na sociedade liberal moderna. Com objetivo de modificar o padrão mental do louco, mediante a posição de autoridade do médico sobre o louco e sua altivez paternal (BERCHERIE, 1989), Pinel implementa o tratamento moral e com isso o modelo disciplinar, inicialmente em Bicetre e depois em Salpetrière.
É na esteira desta posição moral superior sobre o louco que o discurso médico sobre a doença mental ganha notoriedade à medida que a autoridade médica, garantida pela Anatomia Patológica, e não pela medicina mental psiquiátrica, fortalece os efeitos de um "discurso
verdadeiro" sobre a doença mental. Contudo, cabe salientar que a psiquiatria é herdeira da antiga medicina das espécies, passando a classificar a doença mental sob a lógica manicomial do isolamento terapêutico.
O século XIX foi marcado, portanto, por uma grande mudança na organização do poder. Como dissemos, o poder de soberania do Monarca desaparece. Com essa queda, abriu-se caminho para uma sociedade agora mapeada pela autoridade médica, em consonância com o poder do Estado laico de Direito.
Cabe aqui então ponderar que a imago do Deus-Pai desliza para o que Foucault (1963/1994) denominou Clero do Corpo: a Anatomia Patológica e, sob a caução de sua autoridade, a psiquiatria. Nada mais justo, então, do que pensar a medicina moderna como um clero do corpo instituído pela autoridade de seu discurso que passa a regimentar a vida e constitui, não uma imago propriamente "Deus-Pai", mas "Deus-Médico", ou Deus-médico-pai". Esta condição reserva à medicina uma certa relação "pater" no imaginário social, mas denota sobremaneira, também, o declínio da imago paterna, tal como asseverado por Lacan (1938).1
Podemos acrescentar aqui que a própria medicina é um índice claro do declínio da imado Deus-Pai. O poder de soberania perde sua força para abrir espaço ao poder disciplinar (FOUCAULT, 1973-1974/2010). Diante desse declínio, a medicina ocupou nesse momento um lugar de exceção no século XIX, cujo desenho circunda o corpo como palco de dominação e sustentação do lugar de autoridade. É conhecendo e dizendo a verdade sobre o corpo, que a medicina opera na vida humana, estrategicamente, toda uma disciplina que rege a organização normativa da sociedade moderna, ocupando, como dissemos, uma certa relação "pater" no lugar da soberania da Igreja pautada na imago do "Deus-pai", à medida que se inscreve como detentora dos destinos e dos rumos humanos na sociedade liberal do século XIX. Com efeito, o humano passa a nascer, viver, socializar-se, adoecer e morrer nas mãos do médico. Eis então, aí, o cerne da medicalização da vida, e consequentemente da loucura, na sociedade moderna.
O ambiente institucional do século XIX: Salpetriere e a loucura histérica em torno do corpo doente
1 "(...) um grande número de efeitos psicológicos parece-nos decorrer de um declínio social da imago paterna. Um declínio condicionado por se voltarem contra o indivíduo alguns efeitos extremos do progresso social (...). Seja qual for o seu futuro, esse declínio constitui uma crise psicológica. Talvez seja com essa crise que convém relacionar o aparecimento da própria psicanálise" (Lacan, 1938, p. 67).
Com respeito às instituições da loucura, a autoridade médica evoluiu de maneira incisiva para a retomada da investigação médica sob as premissas da apuração sistemática dos substratos neurofisiológicos das doenças mentais, doravante as pesquisas em torno da chamada "paralisia geral" de Bayle (BERCHERIE, 1989). Salpetriere é uma dessas instituições, em que o médico, em posição de autoridade, tentava sustentar seu discurso sobre o corpo doente, bem como sobre a alienação mental, sob a égide do organicismo. Contudo, Salpetriere ganha, sem dúvida um certo destaque na história.
Como salientamos, a Anatomia Patológica se apoderou do corpo no século XIX, ocupando o lugar de um clero da saúde e da doença. Interessante, contudo, o fracasso desta apropriação.
A loucura histérica do final do século XIX vem dar novos contornos à questão desta intervenção Deus-médico sobre o corpo – o que se acha no próprio ponto-chave do surgimento da psicanálise.2 Neste ponto, atingimos o cerne da questão que constitui o divisor de águas entre a institucionalização do saber médico e seu ponto limite: o corpo da histérica, que vem, com sua contestação à impotência do Outro, "denunciar" a falta de saber do médico sobre o corpo (QUINTELLA, 2015). Com sua simulação à doença anatômica e fisiológica, a histeria cai como uma bomba no seio da Anatomia Patológica, desnorteando seu saber e retirando das mãos do médico o domínio da verdade – mais precisamente, não de suas mãos, mas de seu olhar. O que a Anatomia Patológica não se apercebeu é que o "corpo doente" da histérica não serve para ser olhado, conhecido, "curado". O corpo histérico se oferta a uma leitura refinada, que se faz não com os olhos, mas com os ouvidos, demandando do médico algo novo, algo antes não aplicado no universo científico que, curiosamente, um neurólogo decidiu inventar. A escuta analítica é o ponto de virada que opera um corte epistemológico sobre o corpo e a relação ao saber; é precisamente o que vem responder à circunstância específica da histeria no final do século XIX: neste ponto da história, por que a conversão histérica toma tanta força, por que ela se inscreve preponderantemente no corpo? Ela vem, com efeito, desmantelar a autoridade médica, em específico da Anatomia Patológica, com sua contestação à autoridade, marca da manifestação – patho-lógica – do desejo recalcado.
2 Esta questão nos leva a indagar, a partir do evidente declínio do poder religioso e do regime monárquico, sobre uma crise das tradições e dos lugares predeterminados de cada indivíduo na sociedade, na vida, na subjetividade, na relação ao Outro. É nesse sentido que Luiz Cláudio Figueiredo (1997) localiza os movimentos da psicologia e da psicanálise no rol dessa contextualidade, em que os norteadores sobre a vida e o desejo passam a ser circunscritos num espaço muito mais fluido e conflitante das relações de poder e de subjetivação do que num espaço rígido, no qual o chamado "poder de soberania" (FOUCAULT, 1973-1974) funcionava.
É precisamente sob a égide da transferência histérica que o discurso médico se desnorteia em meio ao saber sobre o corpo. O amor histérico dirigido ao médico nada mais faz do que tentar suturar o que este mesmo movimento deflagra: um Outro impotente, um pai derrubado de sua posição de autoridade. Não é sem motivo que a mestria da medicina moderna foi tão visada pela histérica com seu corpo adoentado: ela faz incidir sobre a própria autoridade (médico-paterna) a denúncia de sua impotência. Como faz toda histérica, o amor ao médico constitui-se no seio mesmo da claudicância paterna.3 A histérica oferta seu corpo como palco de decifração, não de observação empírica, sequer de intervenção científica: com isso ela aponta a falha do saber médico sobre o corpo, arrebatando aquele de um lugar de autoridade. A histérica instala seu amor dirigido, precisamente, a um saber, mas não propriamente o saber científico do médico, muito pelo contrário: trata-se de um saber que, no Outro, faz enigma, é inconsciente. Saber sobre o qual Freud inventivamente operou, dando a palavra à "adoentada" – protagonista do discurso mediante a livre-associação de ideias – e fazendo desvelar pela palavra o conteúdo fantasmático do sintoma.
A história que marca a descoberta freudiana passa necessariamente pela profundidade do problema histérico que ganha novos contornos a partir do momento em que Freud decidiu pela escuta analítica, no lugar de um primado anterior, que era o primado do olhar. Este último era o fator de calcificação a autoridade médica. Com efeito, a medicina constituiu seu saber pela base de um método que não se dá a ver, mas se pauta no primado do olhar, e simplesmente sustenta seu discurso verdadeiro com o mesmo olhar que faz subordinar toda e qualquer linguagem, discurso, experiência ou mesmo conhecimento, à soberania deste olhar. A verdade sobre a doença, com suporte perceptivo, emancipa uma distribuição da vida, que se modula sob o império do discurso médico.
Circunscrevendo um caminho diverso, Freud se abstém, radicalmente, da posição de autoridade, enunciada pelo saber prévio e objetivo sobre o corpo. Percebendo o pano de fundo que precipitava tal posicionamento no meio científico, característico de um verdadeiro desnorteamento no campo da Anatomia Patolóigica frente aos enigmáticos sintomas da histeria, Freud insistiu no aprofundamento dessa busca. O que precedeu esta descoberta? O encontro de Freud com aquele que viria a se tornar o mais importante de seus mestres - Jean Martin Charcot - um importante neuroilogista do hospital Salpêtrière que tentava desvendar os fatores determinantes envolvidos na sintomatologia histérica por vias investigativas que
3 Lacan (1956-1957, 1995), faz referência à questão da claudicância e impotência paterna no fantasma histérico, ao mencionar o caso Dora: "O amor que ela tem por este pai é então estritamente correlativo e coextensivo à diminuição deste" (p. 142).
diferiam da busca organicista das causas dos sintomas corporais na histeria. Tal empreendimento, que se deu em torno do método de sugestão hipnótica, proporcionou a Freud a constatação de que os sintomas se articulam a ideias, o que veio a se fazer evidenciado pelo conceito freudiano de inconsciente.
A descoberta freudiana e a criação da psicanálise, cujo cerne é a invenção da escuta analítica, se acham intrinsecamente ligadas, especificamente, á posição de Freud na relação ao saber.4 Isto implica necessariamente uma inversão na lógica da tutela moral sobre o psiquismo do louco (histérico ou psicótico), desbravando-se um novo movimento que demarca a abstinência como cerne da própria condição do processo analítico - condição na qual a autoridade médico-paterna se constitui: a transferência.
Foi nesse ambiente, institucional e medicalizado, que Freud surgiu, com sua inversão ética com respeito à autoridade perante a doença. Tal é o caráter inovador do ato freudiano. O inventor da psicanálise não se apresenta como alguém que detém um saber a ser aplicado em nome da boa saúde, de um bem-viver medicalizado, mas funciona simplesmente como causa – causa de um discurso que faz a "adoentada" falar. Trata-se de uma verdadeira inversão operada por Freud num primado que passa a ser o da escuta, fazendo emergir, pela fala, a condição de sujeito do inconsciente. Esta inversão faz surgir a figura do psicanalista, respondendo não do lugar de uma autoridade, mas de uma causa.5Este ato de Freud é, ao nosso ver, no seu fundamento, desmedicalizante. Freud, ao dar a palavra à histérica, desmedicaliza, à medida que confere, não ao médico-cientista, mas ao sujeito do inconsciente, o discurso verdadeiro sobre o corpo.
Também com relação ao problema da psicose, não obstante todas as dificuldades clínicas de Freud no tocante ao tratamento desta (FREUD, 1914/1996), sua leitura sobre a construção delirante mapeia um novo terreno epistêmico que faz desmoronar a via medicalizante e institucionalizante da apreciação médica (tutelar) sobre a loucura e, principalmente, sobre o louco - o que Jacques Lacan recupera e leva às últimas consequências, não recuando da escuta do sujeito psicótico. Para Freud, com rigor, o delírio é uma costura que organiza o sujeito psicótico em torno do desmoronamento subjetivo diante da 4 Freud abandona definitivamente a posição de autoridade ao inventar a escuta psicanalítica. No método hipnótico o médico aplica a sugestão e consegue os efeitos desta sustentado por uma posição simbólica de autoridade e de determinação sobre o paciente. Freud salienta que o que se acha por trás da eficácia da sugestão hipnótica é a transferência. Na escuta analítica, Freud se abstém da posição de determinação simbólica, funcionando como causa do discurso do sujeito, e não como autoridade e determinação sobre seu destino psíquico.
5 Com efeito, Freud foi levado pelas próprias histéricas ao método da associação livre, dado que elas exigiam a escuta, processo que veio a se tornar o cerne da descoberta do inconsciente.realidade que se destroça, exigindo uma saída muito própria do modo como o psicótico modula seu mundo.
Cabe aqui realizar, para encaminhar nossa questão, algumas assertivas do pensador vienense que inaugura um corte no modo como se encarou a loucura psicótica, além da loucura histérica, na história do processo de medicalização da vida.
Algumas considerações freudianas sobre a concepção da psicose: desmedicalização da loucura
Para Freud, a psicose encerra uma forma de se relacionar com a realidade, muito específica de uma ruptura da libido objetal. Freud (1911/1996) vai conceber o delírio como um processo de reconstrução, de costura da realidade, em que o sujeito, para dar conta da ideia rejeitada, se vê diante da necessidade de reconstruir seu mundo pela via do delírio. Se para Freud o delírio psicótico é uma tentativa de organização, de cura, e não um desvio de norma, um erro ou uma doença caucionada pelo distúrbio, há algo aí que funciona como uma ruptura teórico-epistemológica, e que deflagra uma nova forma de encarar o problema da loucura.
De Descartes a Pinel, a loucura é o resultado do erro, do defeito, da desvirtuação. Se a filosofia cartesiana conjurou o louco à condição do erro na idade clássica, implicando o hospital geral na solução excludente desta lógica, Pinel reatualiza a exclusão moral, tornando o erro da loucura por sua desrazão um problema de liberdade. De fato ele visa libertar o louco, mas sob a condição do isolamento terapêutico, fundamentalmente sustentado pela concepção tributária do cartesianismo e da configuração sócio-política da nova burguesia liberal no século XIX.
Freud, ao contrário, emancipa o louco de sua condição de erro, valorizando o conteúdo do discurso delirante e demonstrando os motivos de sua articulação inconsciente. Em Schreber, o que se evidencia é sua dificuldade sumária de ocupar o lugar de presidente do tribunal de apelação, aquilatado pelo problema da reprodução que eleva ao status de realidade a necessidade do recuo para a posição feminina. Sua ideia rejeitada retorna no real da emasculação: diante de sua nomeação como Presidente, a ideia de que "deve ser mais fácil ser mulher e se submeter ao ato da cópula" se reverte na própria necessidade paranóica da transformação em mulher, resolvendo-se o problema da procriação e da filiação mediante o delírio de ser escolhido de Deus para a instauração de uma nova raça humana, purificada, por meio da emasculação seguida da cópula com Deus.
Por meio da leitura do caso Schreber fica evidenciado que, na base da paranóia, reside um conteúdo que dá esteio para a construção do delírio, este aparecendo como tentativa de solução para um impasse que é de ordem subjetiva, não se caracterizando como distúrbio, ou desvio de norma. Com efeito, o narcisismo prepondera na psicose em que a libido do eu se evidencia na forma do delírio de estar sendo notado, observado, perseguido, olhado, ou mesmo pela megalomania que encontra no eu a causa de todos os grandes acontecimentos da vida. Trata-se da libido do eu que, perante a ruptura radical com o mundo dos objetos, tenta reconstruir a realidade sob os auspícios do narcisismo.
Se para Freud, contudo, o narcisismo compromete o avanços do tratamento psicanalítico da psicose, para Lacan restam motivos para que, diante dela, a escuta psicanalítica não recue, dada a necessidade de fazer com que o inconsciente, ali a céu aberto, ganhe uma possibilidade de fala na direção da estabilização via construção delirante.
A leitura de Freud sobre a psicose desmonta a concepção vigente sobre a loucura até então sob os auspícios da medicalização, herdeira do racionalismo cartesiano. Freud afasta o psicótico da condição do desvio, do distúrbio, da desrazão, tributária do cogito cartesiano. O delírio não é o desvio de uma norma sobre a realidade, mas uma tentativa de constituição da mesma. Cabe salientar que, com Freud e Lacan, mesmo na neurose, a realidade não é dada pela pura experiência, mas se acha atravessada pelo simbólico que abre o caminho do mundo ficcional humano, denotando a singularidade de cada sujeito em sua relação com a loucura. Isto aproxima todos os seres falantes da condição da loucura, à medida que o simbólico nada mais faz do que produzir a realidade na conjunção com o imaginário, fazendo da realidade algo secundário à entrada do sujeito na linguagem (LACAN, 1955-1956/1985).
Na psicose o simbólico se acha foracluído, o que redunda muitas vezes na construção delirante como forma de organização da própria realidade. Sendo assim, não há por que sustentarmos uma posição superior diante do sofrimento humano em suas produções delirantes e/ou alucinatórias. A discussão psicanalítica sobre a psicose exige do clínico uma posição de testemunho das construções possíveis diante das questões que emergem na vida psíquica de todo sujeito, as quais são especificamente encaminhadas pelo psicótico de maneira peculiar, muito frequentemente pela via do chamado "empuxo à mulher" e do delírio (TENÓRIO, 2001). Com efeito, o psicanalista não é aquele que atesta, com um saber soberano ou mesmo suposto, a condição da psicose, mas aquele que, abstendo-se do lugar de autoridade, emancipa o sujeito de sua condição subjetiva de objeto da invasão do Outro por meio da fala. Tal abstinência, confere ao psicanalista a possibilidade da escuta do delírio, na direção da estabilização psicótica, não implicando nisso nenhuma correição, tampouco, muito menos, tutela ou exercício de poder.
Para encaminhar: Freud, Foucault e a sobremedicalização psicanalíticaA esta altura fica claro que estamos abordando um certo eixo do movimento psicanalítico que recupera de Freud a via de uma práxis desmedicalizante. Este processo culmina na clínica da psicose, desbravada pelo pensamento de Jacques Lacan.
Entretanto é necessário fazer uma pontuação sobre este processo. Em Doença Mental e Psicologia, Foucault (1954/1984) questiona o caráter possivelmente alienador que as teorias psicanalíticas, em vertentes específicas, impediriam a real desnaturalização da loucura, posto que um discurso verdadeiro dobre os processos psicológicos, ora não conjugariam a questão da loucura e da manifestação delirante, ora tentariam prescrever uma verdade sobre a condição psíquica do sujeito psicótico, fazendo do consultório psicanalítico uma extensão da prática médica em que o poder se mantém sobre o destino da experiência subjetiva. Contudo, se Foucault está correto em sua análise, trata-se de um interlúdio entre leituras diversas e possíveis da proposta freudiana.
A metapsicologia e a abordagem da psicose em Freud acabam por engendrar, a nosso ver, não o desenvolvimento de um "discurso verdadeiro" sobre uma "psicologia dos processos mentais", mas uma ética que implica um novo modo de intervenção capaz de dar voz ao delírio, possibilitando a emergência de uma verdade particular do sujeito que sofre com sua desestabilização. Com efeito, a ideia de sobremedicalização psicanalítica se aplica apenas àqueles que, não avisados sobre os avanços do pensamento psicanalítico, reproduzem a lógica tutelar operando posição de autoridade em relação ao louco e à loucura, via transferência. O psicanalista deve sustentar sua práxis, outrossim, pela abstinência de sua posição de saber e autoridade, funcionando como causa. Do contrário, como dizia Lacan, "a impotência em sustentar autenticamente uma práxis pode reduzi-la, como é comum na história dos homens, ao exercício de um poder" (LACAN, 1958/1998, p. 592). Cabe frisar, assim, que a abstinência da posição de autoridade inventada por Freud a partir da escuta psicanalítica, se levada em seu radical fundamento, é um ato que produz necessariamente uma das principais raízes para a desmedicalização em saúde mental hoje.
Portanto, a psicanálise não é, em seu fundamento, uma sobremedicalização, já que se abstém do lugar de remediação do mal, de outra sorte imputada a uma figura de autoridade. Esta constatação implica na abstenção do psicanalista como aquele que detém um saber sobre a cura, instaurando-se um campo que faz da transferência o pivô do trabalho clínico. Tal posição ética potencializa aquilo que o discurso médico apaga: a singularidade de um sujeito.
Sendo assim, dado que estamos tratando aqui de um novo primado no auge da sociedade moderna medicalizada - o primado da escuta - é imprescindível conceber o corte epsitemológico operado por Freud também como um corte político. Dentre outros grandes pensadores do século XX, como Foucault (1963/1994), Canguilhem (1943/1966), Castel (1978), Saraceno (1999), e outros, fundamentais para se pensar a necessidade da luta pela desmedicalização no campo da saúde, Freud foi o marco inicial deste processo na história do pensamento moderno, já que abriu uma fenda na lógica medicalizante referendada pelo primado do olhar. O primado da escuta, que dá ao sujeito a possibilidade de produzir sua própria singularidade a partir da análise do inconsciente, estabelece novo parâmetro de relação com a verdade na pólis. Se Comte não admitia o conhecimento positivo sobre a verdade psicológica humana (CANGUILHEM, 1943/1966), Freud desloca o foco desta questão para a emergência de uma verdade particular de cada sujeito, consistindo um novo discurso no rol das formas de laço social instauradas pela realidade subjetiva humana. O tratamento psicanalítico não é, com efeito, oferta científica de garantia, mas aposta naquilo que, de possível, se produz como sujeito, na localização do gozo e na estabilização delirante.
Cabe então aqui retomar a interrogação a respeito da entrada da psicanálise nos Centros de Atenção Psicossocial, característica da realidade brasileira. O discurso psicanalítico assume importância capital nas práticas e nos dispositivos de Saúde Mental hoje, contribuindo, inclusive, ao combate contra o tecnicismo nesse campo (TENÓRIO, 2001). Evidencia, com isso, seu lugar na política pública, não raro a noção de Clínica Ampliada constituir parâmetro balizador dessas práticas - noção consideravelmente presente em muitos dos Centros de Atenção Psicossocial (BEZERRA Jr. 1996). Isto pode também ser amplamente visualizado nos processos de Desinstitucionalização e nos ambulatórios públicos da rede de saúde.
Cabe pontuar, entretanto, a não equivalência, e menos ainda, a continuidade, entre a Reforma Psiquiátrica de inspiração Italiana e a Psicanálise. Esta última passa, contudo a adentrar os dispositivos de saúde mental, especialmente os CAPS, de maneira específica à sua lógica clínica. De fato, como apontam importantes autores da atualidade como Tenório (2001), Baio (2003) e Figueiredo (2001), a psicanálise deve participar das práticas em saúde mental como um discurso específico - o discurso psicanalítico - ao qual o psicanalista se submete. Trata-se de uma práxis clínica entre vários (BAIO, 2003). Não se reportando a um discurso verdadeiro sobre a loucura, a psicanálise não está em posição de convencer, mas de
conviver (FIGUEIREDO, 2001), no liame da diferença, que faz potencializar o exercício de cidadania do louco, em seu território e em sua pólis. É nessa dimensão que, referenciando a prática analítica em saúde mental dentro de uma lógica ampliada, Benilton Bezerra Jr. (1996) enfatiza que, não obstante a descontinuidade entre a clínica psicanalítica e a lógica da Reforma Psiquiátrica, as duas não são mutuamente excludentes.
Acrescentamos aqui que a psicanálise adentra os dispositivos de saúde mental por seu fundamento desmedicalizante, pela desconstrução do objeto loucura, seja neurótica, seja psicótica, dominado historicamente pela psiquiatria e pela biomedicina. Trata-se, mais do que dizer a verdade sobre o processo psíquico da loucura, de aplicar um discurso que sustenta esta desconstrução, na via de uma possibilidade, clínica, de tratamento no rol das práticas desenvolvidas num CAPS. Com efeito, nada mais preciso do que situar o fundamento da escuta analítica como desmedicalizante, à medida que desconstrói a lógica paternalista do domínio sobre o louco e da contenção institucional. Funcionando como furo, o ato psicanalítico - não reproduzível - desmantela a posição de autoridade, efetuando-se no trabalho do caso a caso. Em sua base, portanto, a psicanálise desmedicaliza, dado que esfacela o objeto da psiquiatria fazendo do delírio, um meio, e do louco, um sujeito.
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Recebido em: Setembro de 2015 Aceito em: Janeiro de 2016
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