. O texto que vos apresento expõe uma lógica que operou no tratamento de pacientes no Hospital Psiquiátrico Instituto Raul Soares, no período de 1998 à 2005.
. Em primeiro lugar, contextualizaremos sucintamente o funcionamento do hospital, circunscrevendo no período acima descrito, o cenário de nossa prática clínica e de nossa
pesquisa.
. O Instituto Raul Soares(1) que presta serviços ao SUS, é referência em Saúde Mental do Estado de Minas Gerais, atendendo adultos de ambos os sexos, portadores de transtornos mentais graves. Além dos 600 pacientes recebidos por mês no Serviço de Urgência, que conta com 7 leitos de observação, existem ainda 120 leitos operacionais distribuídos em 4 enfermarias- sendo duas femininas e duas masculinas-, assim como ambulatório e permanência-dia.
. A experiência da “Sessão Clínica” nesta instituição, foi introduzida por um grupo, do qual faço parte, que reuniu-se em torno de questões suscitadas pelo manejo clínico de pacientes atendidos no I.R.S. Naquela circunstância, os problemas com os quais nos deparávamos, longe de se restringirem à complexidade e à gravidade dos quadros clínicos, estendiam-se, freqüentemente, às dificuldades não menos importantes que ali enfrentávamos, no que diz respeito ao manejo do próprio corpo clínico que lidava com tais pacientes. Eu gostaria então de esclarecer em que sentido foi possível encontrar, a partir de princípios da psicanálise, um meio de abordar essa dificuldade na qual convergem tanto o tratamento dos pacientes quanto o manejo do corpo clínico que os atende. Pois foi da necessidade de encontrar uma sustentação no discurso psicanalítico para abordar tal dificuldade que a criação institucional da Sessão Clínica surgiu para nós como um ato político(2).
. A “Sessão Clínica” é um dispositivo onde as estratégias de condutas no tratamento são discutidas a partir de discussões e construções clínicas. Elas aconteciam no I.R.S. e dela participavam os técnicos relacionados ao caso em questão, profissionais que recebiam
pacientes na urgência, auxiliares de enfermagem, assim como assistentes sociais, médicos, terapeuta ocupacional, entre outros, seja do Raul Soares tanto como de outra instituições de
referência para o paciente na rede assistencial. Para a “construção do caso clínico”, trabalhávamos com duas modalidades. A primeira, a “apresentação do caso”, aonde os técnicos apresentavam dados da história relatados pelo paciente, assim como pelos familiares entre outros. A segunda modalidade, a “apresentação de paciente”, aonde o próprio sujeito em questão participava de uma entrevista, sendo escutado pelos diversos profissionais a partir das perguntas de um único entrevistador. A discussão do caso era aberta no momento seguinte a entrevista. Tanto em uma modalidade quanto na outra, objetivávamos a “Construção do Caso Clínico(3) ” de forma a orientar o tratamento. Ocorriam ainda, na própria Apresentação de Paciente, intervenções clínicas pontuais que incidiam sobre a fala do sujeito entrevistado, sendo estas norteadas, bem entendido, por aquilo que o entrevistador escutava no seu relato.
. Tentarei explicitar de que modo pudemos sustentar a direção de tratamentos, a partir
desse dispositivo que via a “construção do caso clínico”, face a uma instituição composta por um leque eclético de orientações teóricas não raro divergentes na condução clínica. Ali reunia-se uma equipe que comportava desde os mais ferrenhos defensores da primazia do “ato médico” aos que colocavam em primeiro plano o princípio do trabalho em equipe, numa diversidade que incluía tanto terapeutas biologicistas quanto aqueles que se valiam da orientação psicanalítica, dentre outros. Ora, se o espaço em que os vários saberes disputam entre si é o lugar da prescrição(4) da melhor conduta, o que se constatou é que a Sessão Clínica veio funcionar muitas vezes como um articulador desses saberes ao esvaziar justamente o lugar visado pela prescrição. Isso só foi possível ao se tomar como guia o saber do próprio sujeito em tratamento, no lugar esvaziado dos saberes prescritivos.
. Nesse lugar vazio, ao qual Antônio Di Ciaccia dá o nome de Um-fundador, é possível assistir a emergência da singularidade do sujeito em tratamento. Para explicar o que vem a ser esse um que funda o tratamento na prática de muitos, Di Ciaccia se serve de uma experiência pessoal relatada numa jornada(5) sobre “A prática feita por muitos”, que pretendo reproduzir aqui a fim de que possamos articulá-la com a nossa experiência.
. Quando foi questão, para Antônio Di Ciaccia, fundar a instituição Antenne(6) , duas
pessoas representaram para ele um papel importante, a saber, Françoise Dolto e Jacques Lacan. Ao passo que Françoise Dolto teria manifestado diretamente seu desejo em relação ao projeto de Antônio Di Ciaccia, dando-lhe seu apoio, Lacan não manifestou nenhum sinal de interesse. A. Di Ciaccia se lembra bem do olhar de Lacan e do pensamento que lhe ocorreu de que “ele não estava nem ai”. E no entanto, ele enfatiza, a resposta de Lacan teria sido mais essencial para a fundação de Antenne do que o desejo de Dolto.
. Conforme A. Di Ciaccia argumenta, a intervenção de Lacan não se orientava, em seu entendimento, por algo a ser feito ou não, mas por uma operação que concernia ao seu ser de sujeito. “Lacan, ele afirma, colocou-me contra a parede numa posição que eu achava
impossível de adotar. De um golpe malicioso ele me desequilibrou dizendo: É preciso escolher meu caro”.
. Embora esta frase de Lacan não tenha por si só nenhum interesse significativo, para A. Di Ciaccia ela produziu, segundo suas próprias palavras, o efeito de um ato fundador,no sentido em que o obrigou a autorizar-se de si mesmo, ao instaurar um lugar vazio no espaço em que ele esperava uma prescrição. A. Di Ciaccia nos aponta que somente lhe restava, nesse momento, render-se à evidência de que a escolha já estava feita. Para ele, o golpe malicioso de Lacan teria tido o efeito disso que ele nomeia como Um-fundador, a ser entendido, eu acrescentaria, enquanto marca de esvaziamento do lugar prescritivo deixada pelo golpe malicioso de Lacan.
. A. Di Ciaccia enfatiza assim que a fundação de Antenne se deu através do desejo do Outro, não pela via do ideal ou da identificação, mas do ato. Ele conclui dizendo que seria isso a mola do desejo do analista, donde decorrem múltiplas conseqüências. Ele acentua aliás textualmente que, se de início, qualquer coisa que estava inscrita não era mais apagável, nada poderia tampouco vir, de direito, colmatar essa brecha, uma vez que a perda dos ideais não mais podia ser apaziguada por outros ideais, mesmo sendo analíticos.
. Ao trazer então o fragmento dessa história pessoal de Di Ciaccia, eu tenho o intuito de dizer do esvaziamento do lugar prescritivo que, para mim, concerne justamente a este Umfundador, esse vazio que opera ao fazer emergir o que há de singular e essencial de cada caso na condução de cada tratamento. Durante este período, fizemos o esforço de operar nessa lógica, uma vez que, como tentarei explicitar, é exatamente por ela que a instituição pode fazer-se exceção para aqueles pacientes que nos chegam.
. Da experiência deste trabalho, muitos são os casos, acompanhados na Sessão Clínica do I.R.S., cuja evolução nos parece nitidamente verificar os efeitos que resultam da operação desse Um-fundador. Se optei em trazer a vocês o fragmento que então se segue, é porque penso que sua evolução vem atestar exemplarmente o que pretendo argumentar aqui.
. Refiro-me a Gal, uma mulher cuja psicose se desencadeou na adolescência, logo após seu casamento. Em sua certeza delirante ora Gal se vê conduzida pelo diabo, ora se vê dotada de poderes divinos pelos quais recebe a palavra e as verdades de um Deus que dá a ela poderes de revelação e de cura. Ela os recebe em suas mãos, assim como no pensamento e através de vozes de comando. Tais experiências alucinatórias irrompem com grande sofrimento, segundo ela, porque são recebidas pelos outros com enorme “incompreensão”, suscitando nestes o ímpeto de dizer que Gal é louca.
. No primeiro surto, a irmã leva esta moça para uma Igreja, aonde o discurso religioso, ao dotar de sentido suas vivências delirantes e alucinatórias, as torna mais suportáveis para este sujeito. Por outro lado esse discurso interfere em sua vida na forma de uma imposição moral, proibindo-lhe a prática de muitas atividades que ela julgava prazerosas, como dançar, por exemplo.
. Já nos períodos de melhora em que as alucinações cediam, Gal se afastava da Igreja. Para quem se diz “sambista como poucas”, a proibição da Igreja torna-se então um fardo indesejável que ela rejeita. Mas tão logo as vivências delirantes e alucinatórias retornam, pondo a perder o sentido antes prescrito pela Igreja, Gal as remete à “incompreensão” da loucura apontada pelos outros naquilo que ela diz. É em tais circunstancias que Gal chega ao I.R.S., em sua primeira internação, e nos fala da dificuldade de suportar este lugar que lhe é imposto como louca. Diz que não é louca, mas incompreendida, e sofre por isto. Pois no momento em que sua construção delirante de ser aquela que tem o dom de mensageira de Deus se coloca em cheque, a ausência de sentido que isso gera tem para ela efeitos devastadores(7) , causando seus episódios de agitação e revolta, onde as crises e a presença do diabo se instalam em sua vida.
. Em uma apresentação de paciente na “Sessão Clínica” do I.R.S., o que vinha sendo trabalhado em suas sessões individuais ganhou peso após uma intervenção do entrevistador Wellerson Alkimin, o orientador desta “Sessão Clínica”. Naquele momento, Gal interpela o entrevistador, verifica a instituição e constrói a partir daí seu ponto de ancoragem no tratamento. Ela pergunta a ele se ela é louca, ao que Wellerson responde que não, para em seguida dizer, servindo-se das palavras da própria paciente, que ela era incompreendida. Sem deixar de acrescentar, e esse é, para nós o ponto essencial, que havia também uma incompreensão naquilo que ela mesma vivia, o que a remeteu a um processo até então inédito de elaboração de suas vivências.
. Foi exatamente por ter extraído esse significante de substituição empregado por Gal – não louca, mas incompreendida - que Wellerson pôde intervir em ato para instaurar essa instância referida por A. Di Ciaccia pelo nome de Um-fundador. Tratou-se, como se nota, não de prescrever um sentido à vivencia delirante de Gal, mas de oferecer a ela esse lugar vazio sobre o qual Gal viria construir pouco a pouco as soluções necessárias a sua sustentação, o que aliás pôde ser verificado a posteriori na continuidade do tratamento.
. Em suma, acredito que este pequeno fragmento seja suficiente para trazer pontos que nos interessam aqui. No que tange ao tratamento desta paciente, a “Sessão Clínica” teve uma função organizadora fundamental ao fazer uma marca que mudou o “destino” de Gal. A saber, que se, para a paciente, a suspensão das significações ofereceu um lugar vazio em que ela pudesse estabelecer suas próprias soluções, para a equipe, esse efeito de esvaziamento prescritivo se observou pelo fato de que, ao levar o discurso analítico à “Sessão Clínica”, o que estava em questão, para nós, não era prescrever a teoria psicanalítica como uma forma de saber privilegiado para a condução dos casos ali discutidos. Antes foi possível deixar o saber em posição de verdade, mas fora da posição prescritiva de comando, conforme o andar de cima do matema do discurso analítico nos indica.
. No meu entender isso pode acontecer na medida em que o discurso analítico esvazia, por motivos que datam de sua própria origem, o lugar em que as diversas práticas terapêuticas concorrem para definir a quem cabe o direito da prescrição. Por isso acreditamos poder encontrar, no discurso psicanalítico, a possibilidade de ofertar um campo de articulação entre esses vários saberes a partir do esvaziamento do lugar prescritivo em que se vê emergir a função, definida por Antônio Di Ciaccia, como Um-fundador, o qual faz valer, conforme exemplificamos acima, o significante trazido pelo próprio sujeito em atendimento como um princípio a orientar as estratégias terapêuticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALKMIN, W. (2003) “Construir o caso clinico – a Instituição enquanto exceção”. Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental, nº 9, Belo Horizonte: IPSMMG
ALVARENGA, E. (2003) “A devastação na psicose”. Clique, nº 2, Belo Horizonte: IPSMMG
ANDRADE, R. D. R. (2006) Discussão x Construção do Caso Clínico . Revista Digital CliniCAPS:
Impasses da Clínica . Disponível em: www.clinicaps.com.br
DI CIACCIA, A. (1999) “Da Fundação por Um à prática feita por muitos”, Curinga, nº 13, Belo Horizonte: EBP- MG
LACAN, J. (2003) “Ato de fundação”, in: Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LACAN, J., “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, in: Outros escritos, R.J., Jorge
Zahar, 2003.
LACAN, J. (2003) “Carta de dissolução”, in: Outros escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
LAIA, Sérgio. (2003) “A prática lacaniana nas instituições”. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº 42.
|
(1) O dados quantitativos relativos ao I.R.S. foram cedidos por Hilda Maria S. M. Zschaber e Telma de Ávila R. Nunes. Eles se encontram disponíveis no anteprojeto para o Curso de Especialização em Gestão Hospitalar da Escola de Saúde Pública de Minas Gerais.
(2) A propósito dos princípios que reúnem uma equipe de trabalho em torno de uma causa, consultar J. Lacan: “Ato de Fundação”, “A Proposição de 9 de outubro” e “Carta de Dissolução” , in Outros Escritos, RJ, Jorge Zahar, 2004.
(3) Termo proposto por Carlo Viganó 1999, que, em síntese, diz da “forma de se dar uma ordenação lógica acerca da estrutura de funcionamento do sujeito de forma a possibilitar um cálculo da clínica” ( esta referência foi extraída do texto de Renata Dinardi, “Discussão X Construção do Caso Clínico”).
(4) Conforme indica o dicionário etimológico de O. Bloch e W. Von Wartburg, o léxico prescrição, que data de 1544, era um termo de uso originalmente restrito à doutrina do Direito, onde servia apenas para denotar uma ordem jurídica. Ele só receberá uma acepção médica no século XVIII, mais precisamente, a partir de 1788, ano em que será empregado o sintagma “prescrição médica”. Já no Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete, “prescrever” aparece como ordenar, regular de antemão e explicitamente... estabelecer, determinar; preceituar, fixar, limitar, marcar. Se a idéia de prescrição se orienta, como se pode ver, por uma lógica impositiva que envolve, em sua origem jurídica, a forma de um ditame ou de um preceito, a lógica de Construção de um Caso Clínico visaria, como tentarei demonstrar, a relativizar essa dimensão impositiva. Buscase assim deslocar aqueles que conduzem um tratamento do lugar desse saber prescritivo, em que cada sinal corresponderia a uma solução determinada a priori, para dar lugar a uma estratégia em que o saber do paciente, assim como as soluções que ele próprio inventa para dar conta do seu sofrimento, venha orientar os técnicos envolvidos na condução do caso.
(5) III Jornada da RI3 – Rede Internacional de Instituições Infantis.
(6) “Antena 110” é uma das instituições da RI3, localizada em Bruxelas, que acolhe crianças psicóticas ou com
graves perturbações de personalidade.
(7) A propósito do tema da devastação na psicose, Cf. ALVARENGA, E. (2003) “Devastação na psicose”. Clique – Revista dos Institutos Brasileiros de Psicanálise do Campo Freudiano – O sexo e seus Furos, nº 2. Belo Horizonte: I.P.S.M.M.G, pp. 44-49. |