ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 15 Setembro à Dezembro de 2011
 
   
 
   
  Artigos  
   
     
  De volta para casa: observações sobre a política pública e o
analista na desinstitucionalização

Coming back home: appointments on public politics and the analyst in
the desinstitutionalization
 
     
 

Renata Estrella
Especialista em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria IPUB/UFRJ;
Mestre em pesquisa e clínica em psicanálise pela UERJ;
Supervisora de desinstitucionalização da Casa de Saúde Doutor EIRAS (Parambi-RJ) pela
Coordenação de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.
E-mail: renataestrella@hotmail.com

Resumo: Este artigo traz observações sobre as ações da política pública de saúde mental – a partir do programa De Volta para Casa – e do analista neste campo.É defendida a tese de que a psicanálise abre uma brecha ao sujeito do inconsciente, excluído pela ciência que o inaugurou e pela política que pretende incluí-lo. No caso da desinstitucionalização, a mudança da realidade objetiva consequente à saída dos asilos não é suficiente para que os moradores sintam-se em casa. A brecha aberta pelo analista pode operar um 'retorno' para casa que considere um lugar para o sujeito excluído, que não é a inclusão. Assim, aproxima-se a inserção social da inserção simbólica no campo do Outro. O que retorna é da estrutura do Outro, de elementos que provém do significante que se tornam essenciais na encarnação, na entrada do significante no real. Conclui-se que a política deve conter em seu interior a clínica, já que não é capaz de sozinha voltar o sujeito para casa.

Palavras-chave: Saúde mental, política, psicanálise, sujeito do inconsciente.

Abstract: This article comments on the actions of public politics for mental health – about the Back Home program - and the role of the analyst in it. It defend the thesis that psychoanalysis operates with the subject of the unconscious, excluded by science that inaugurated it and by the politics that wants to include it. In the case of desinstitutionalization, the consequent change of objective reality outside of nursing homes is not enough for residents to feel. The gap created by the analyst could operate a 'return' home that considers a place for the subject excluded that isn't inclusion. This article compares the social integration with the symbolic inclusion in the Other. What returns come from the structure of the Other, that is the elements that become essential at the entrance of the signifier in the real. The article concludes that the politics must contain within the clinic, since politics is not able to return alone the subject home.
Keywords: Mental health, politics, psychoanalysis, the subject of the unconscious.
 
 


De volta para casa: observações sobre a política pública e o analista na desinstitucionalização1

Este artigo parte da inauguração da ciência moderna, momento em que o sujeito do inconsciente adveio e foi por ela foracluído. Em seguida, situa-se a psicanálise, que se tornou possível neste momento de inauguração da ciência, mas opera de forma diferente desta, a partir do sujeito do inconsciente. Contrastam-se, então, estas práticas com a política por meio de programa caro a desinstitucionalização, que pretende incluir aqueles excluídos por anos nos asilos psiquiátricos. Ao pretender incluí-lo tampouco a política opera com o sujeito do inconsciente. Assim, defende-se a tese de que a política deve conter em seu interior a clínica, dispositivo que abre uma brecha ao sujeito, ideia que aproxima a inserção social da inserção simbólica no campo do Outro.

No escrito "A Ciência e a Verdade" (LACAN, 1966/1998) Lacan trabalha algumas implicações interessantes do sujeito. A argumentação do autor situa o sujeito como parte essencial do processo do qual surgiu a ciência moderna. Para ele, no mesmo momento em que a ciência foi inaugurada, a partir do cogito cartesiano, o sujeito adveio.

Assim, além de ser sujeito do inconsciente, retomando uma máxima lacaniana, "o sujeito sobre quem operamos em psicanálise não pode ser outro senão o sujeito da ciência" (LACAN, 1966/1998, p.837), este é o mesmo sujeito da ciência moderna. Para explicar, Lacan (1966/ 1998) afirma que a descoberta freudiana, o inconsciente, seria impossível antes do advento desta ciência. Neste sentido, Elia (2000) formula que a psicanálise mantém relação de derivação com a ciência, sendo o corte que instituiu a ciência moderna a condição de surgimento da psicanálise.

O correlato do advento da ciência, o cogito cartesiano, foi operado por Galileu desde o surgimento da física moderna. No momento do cogito o filósofo voltou o discurso do saber para o agente, tomando a si próprio como questão de saber. Além disso, duvidou de todas as evidências garantidas pela dupla percepção / consciência, entre elas, obviamente, o espaço. Logo Descartes trouxe o sujeito ao partir do método da dúvida hiperbólica, perguntando-se incessantemente qual certeza se pode ter e concluindo pela única: 'penso, logo sou'.

_____________________________________________
1 Este artigo é fruto da dissertação de mestrado da autora defendida em 2010 no Programa de Pós- Graduação em Psicanálise da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com o título O Lugar do Sujeito nos Serviços Residenciais Terapêuticos, com a orientação do professor Luciano Elia.

No entanto, Lacan (1966/ 1998) reforça que a ciência, apesar de ter introduzido o sujeito na cena, o excluiu de sua experiência, não operando com este. Esta continuou buscando o saber, a certeza e não a verdade presente no ser apresentado pelo cogito cartesiano. Pode-se dizer, então, que a ciência moderna trouxe o sujeito para a rua, espaço público, lugar de ir e vir. Mas, em um mesmo golpe, a ciência o abandonou, não o considerando, deixando-o na rua.

"Assim, àquilo que se produziu como fundação da ciência no sentido moderno do termo, a física moderna, empírica e matematizada (Galileu), corresponde uma elaboração filosófica que consiste em retirar as consequências desse ato por relação à subjetividade (Descartes). Essa 'dobradinha' tem uma causa maior: se a ciência moderna abole, com seu gesto de violência conceitual desferida contra as evidências imediatas e perceptuais, a certeza que até então o homem podia ter quanto à consistência dessas evidências, o sujeito, assim abalado, sai de sua toca, desprende-se do fundo indiferenciado em que, crédulo, se mantinha, para desenhar seu contorno angustiado de dúvidas, perguntando-se 'de que então posso estar certo?' Exaurindo ao máximo todos os planos duvidosos, e radicalizando assim a função mesma da dúvida nascida desse abalo e elevadaà condição metódica, Descartes responde: 'Só posso estar certo de que penso, pois mesmo que disso duvide, ainda assim continuarei pensando" (ELIA, 2000, p.21).

A psicanálise torna-se possível somente após este momento inicial da ciência moderna por, ao contrário da própria ciência, operar com o sujeito. E, ao operar com ele, a psicanálise o reabilita na cena discursiva em que a ciência o situou – mas o excluiu – dando lugar, ou casa, ao sujeito.

Em consonância, Lacan (1964 /1985), no Seminário, livro 11, defende que Descartes deu o primeiro passo ao delimitar o sujeito como distinto das funções psíquicas, percepção, consciência etc. Ele considera fundamental que o 'eu penso' tenha sido sustentado por Descartes alinhado com uma enunciação da dúvida, 'eu duvido', mesmo que ele ainda carregasse em seu enunciado muito da vontade de saber. Já a Freud, Lacan (1964/ 1985) credita um passo além, por ter situado a certeza, o saber, na associação dos significantes, valorizando a cadeia e a divisão do sujeito da certeza. Com isto, considera que Freud situou o sujeito no inconsciente, defendendo que ele deva ser reencontrado onde estava o Isso ou, na leitura de Lacan, advindo no lugar onde era real.


Nesta via, Lacan (1964/ 1985) define o Isso como o tecido das mensagens, lugar da rede dos significantes, lugar dos sonhos e também lugar do sujeito, onde pode ser construída a sua casa. Para ele, "Freud se dirige ao sujeito para lhe dizer o seguinte, que é novo – aqui, no campo do sonho, estás em casa. Wo es war, soll Ich werden" (LACAN, 1964/ 1985, p.47). Ou seja, lá onde estava o Isso, o sujeito deve advir. Em suas palavras:

"Aí está o lugar em que se joga a questão do sujeito do inconsciente. E não é, diz Freud, um lugar especial, anatômico, se não, como concebêlo tal como nos é apresentado? – imenso desdobramento, espectro especial, situado entre percepção e consciência, como se diz entre
couro e carne. Vocês sabem que esses dois elementos formarão mais tarde, quando se tratar de estabelecer a segunda tópica, o sistema percepção-consciência. Wahrnehmung-Bewusstsein, mas não se deve esquecer então o intervalo que os separa, no qual está o lugar do Outro, onde o sujeito se constitui" (LACAN, 1964/ 1985, p.48).

Nesta passagem, Lacan (1964/ 1985) indica o lugar do sujeito no Outro, onde pode ser construída uma casa para ele, como um intervalo. No caso em questão se trata de intervalo não muito óbvio, entre couro e carne, metáfora utilizada pelo autor referindo-se à percepção e à consciência. Desta forma, o lugar do sujeito está entre a percepção e a consciência, não sendo um espaço especial. Mesmo assim é algo que perturba este sistema. Lacan afirma que neste lugar descoberto por Freud, só pode 'retornar' o sujeito, "que está aí esperando desde Descartes" (LACAN, 1964/ 1985, p.49).

Sobre este verbo 'retornar', no artigo "O Estranho", Freud (1919 /1996) menciona que a sensação de estranheza, ou o unheimlich, poderia ser causado pelo retorno de um elemento recalcado. Tal consideração é para ele uma das justificativas do uso linguístico que estende a mesma categoria ao seu oposto – unheimlich a heimlich ou vice-versa – já que o estranho não seria exatamente novo, mas profundamente familiar e alienado pelo recalque.

No entanto, a partir das considerações de Lacan (1964/ 1985), pode-se rever esta ideia freudiana sobre a função do retorno como mantenedor do recalcado, situando-o de
outra forma, como retorno de algo essencial. Para ele, "a constituição mesma do campo
do inconsciente se garante pelo Wiederkehr" (LACAN, 1964/ 1985, p.49), ou seja, pelo retorno, conforme traduzido pelo próprio autor. Nas palavras de Lacan:

"É desse passo que depende que se pudesse chamar o sujeito de volta para casa, no inconsciente – pois de qualquer modo, importa mesmo saber quem a gente chama. Isso não é a alma de sempre, nem mortal, nem imortal, nem sombra, nem duplo, nem fantasma, nem mesmo psicosfera em pretensa carapaça, lugar das defesas e outros esquematismos. É o sujeito que é chamado, não há outro, portanto, senão ele, que possa ser escolhido. Há talvez, como na parábola, muitos chamados e poucos escolhidos, mas não haverá certamente outros além dos que são chamados" (LACAN, 1964/ 1985, p.49-50).

Assim, pode-se dizer a partir de Lacan, que é o passo dado por Freud – ao operar com o sujeito abandonado na rua pela ciência e por Descartes – o que abre um lugar possível ao sujeito, inclusive para que se possa chamá-lo de volta para casa. Em outra cena, na vertente da Reforma Psiquiátrica Brasileira, no movimento da desinstitucionalização, o Ministério da Saúde lançou em 2003 um programa de nome De Volta para Casa, cujo objetivo é viabilizar "a inserção social de pessoas acometidas de transtornos mentais" (MS, 2003, p.1). Este programa visa alcançar especialmente pacientes isolados por muito tempo pelas internações longas nos grandes hospitais psiquiátricos e que dependem de apoio especial para que possam ter alta e morar em outro local, tais como os Serviços Residenciais Terapêuticos2.

A ação principal do De Volta para Casa é regulamentar o auxílio-reabilitação psicossocial, um benefício oferecido a egressos de internações psiquiátricas que duraram período igual ou superior a dois anos. Entende-se que este auxílio seja importante para a concretização do projeto de retorno domiciliar do paciente, podendo este incluir-se em uma Residência Terapêutica, na casa dos familiares ou em formas alternativas de residências. Além disso, é obrigatório que o paciente esteja em tratamento na rede extra-hospitalar.

Assim, este programa federal importantíssimo é parte de um cardápio de ações políticas que objetivam reformar a assistência em psiquiatria, organizando uma rede de recursos assistenciais necessários. É caro ao programa garantir ao egresso da internação de longa permanência todos os direitos civis, políticos e de cidadania. Portanto, o De Volta para Casa visa à inclusão social do assistido, sua alta do hospital e um 'retorno a casa', ideia que remete ao morar na própria casa, talvez aquela onde se nasceu e pelo programa se irá retornar.

________________________________________
2
Os Serviços Residenciais Terapêuticos foram regulamentados como dispositivos formais da rede pública de atenção psicossocial no início de 2000, pelo Ministério da Saúde, por meio da Portaria GM nº 106. Esta portaria define estes serviços com esta denominação como casas inseridas principalmente na comunidade, chamadas Residências Terapêuticas, com objetivo de receber egressos de internações psiquiátricas de longa permanência sem suporte social ou laços familiares viáveis.

Neste sentido, este programa é exemplo que coloca uma questão, se uma ação assistencial, de cunho político, seria suficiente para que um cidadão experimente o espaço de forma familiar, doméstica, retorne para casa. A cartilha do programa é aberta com a seguinte inscrição: "a reintegração social é o melhor tratamento" (MS, 2003, p.1), sugerindo que a inclusão na sociedade depende, em alguma instância, da clínica.

Nesta ação, a política credita-se o poder de saber sobre o cidadão, acreditando poder incluí-lo em algum lugar a partir da garantia de seus direitos civis e de cidadania. Portanto, tal como a ciência moderna a política não opera com o sujeito do inconsciente, podendo pecar por deixar o sujeito esquecido na rua, sem lugar, sem casa.

É importante mencionar que a ciência moderna foracluiu o sujeito, sendo esta operação condição de possibilidade para que a ciência mesmo funcionasse. Já a ciência contemporânea, imiscuída no plano de uma medicina comportamental – cada vez mais presente nas formas de pensamento atuais – está preocupada apenas com a busca do saber a partir de evidências. A propósito, Lacan (1976-77) refere-se à inutilidade do saber da consciência, no que se refere a busca da verdade, sugerindo ser a consciência o que busca evidências. Para o autor, é preciso esvaziar as evidências para se ter qualquer possibilidade de acesso à verdade.

Assim, a política e a ciência inaugurada pelo ato cartesiano apenas apontam na direção do sujeito, não operando com este, apesar de terem – especialmente a política pública na área da saúde mental – a pretensão de garantir a alguém um lugar. De qualquer forma, considerando a cena aberta pela política importante, vale questionar que efeitos os Serviços Residenciais Terapêuticos podem ter na estrutura do sujeito, caso este seja considerado.

Freud, ao tratar do inconsciente, deu casa ao sujeito e Lacan (1964/ 1985), no Seminário 11, fala de um possível retorno do sujeito para casa, no inconsciente. Este retorno que, de fato, considera um lugar para o excluído, depende essencialmente de uma construção dele próprio, que pode ser secretariada pela clínica e potencializada pela política – por exemplo, com a garantia de benefício que sustente o cidadão em uma casa. A política precisa conter a clínica em seu interior, já que não é capaz de sozinha voltar o sujeito para casa.

Lacan (1964/ 1985) – lembrando o termo freudiano Wiederkehr – fala de um retorno para casa cuja função garante a constituição do inconsciente. Desta forma, não se trata de retornar a residência onde já se morou, nem do retorno do recalcado de que fala Freud (1919 / 1996) no artigo "O Estranho" e tampouco de uma reminiscência no sentido daquilo que se conserva na memória. Lacan (1964/ 1985) situa em outro âmbito a rememoração, como uma reminiscência originária da estrutura do significante, ou seja, do Outro.

A reminiscência assim pensada por Lacan (1964/ 1985) parece se aproximar mais do método de conhecimento platônico que considera a rememoração como a lembrança de uma verdade – no caso seria da verdade do sujeito e não de um saber – que, para Platão, foi contemplada antes da encarnação. De acordo com Lacan (1964/1985), o que retorna, que é rememorado, é algo da estrutura do Outro, de elementos que provém do significante.

Pode-se considerar o corpo como o locus primordial por onde o significante se encarna causando o sujeito. É o retorno destes elementos, que se tornam essenciais no momento da encarnação, da entrada do significante no real, e não antes dela como quereria Platão, que pode abrir um lugar ao sujeito, garantindo o inconsciente. "O sujeito em sua casa, a rememorialização da biografia, tudo isso só marcha até um certo limite, que se chama o real" (LACAN, 1964/ 1985, p. 51). Ou seja, no âmbito do pensamento, da consciência, o sujeito não retorna ao real para neste registro construir um lugar para si, articulado ao simbólico.

No escrito "Observações sobre o relatório de Daniel Lagache", a fim de defender o sujeito em sua estrutura, Lacan (1960/ 1998) aponta a importância de três formulações que devem ser mantidas juntas, apesar de paradoxais. Na primeira, ele define que o Isso, mesmo em seu caráter inorganizado, contém a estrutura, o que se apresenta como um paradoxo: o aspecto de não organização do Isso coexiste com toda a estrutura da compulsão de repetição (Wiederholungszwang) que Freud situa nele. A segunda ideia se refere ao fato de não haver exclusão lógica ou contradição no Isso e nas pulsões que o habitam. Lacan define esta noção indicando não haver negação nestes. Por último, Lacan trata "do silêncio que as pulsões de morte fariam imperar no Isso" (1960/ 1998, p.664), podendo este, então, ser comparado a um fóssil habitado por restos herdados, onde a pulsão de morte imprimiria uma cavidade.

Neste escrito, Lacan (1960/ 1998) retoma a fórmula freudiana do Isso como reservatório das pulsões, concebidas aqui não como um caldeirão caótico mas como conjunto de mensagens provindas do Outro indeterminado e ao mesmo tempo endereçadas a ele. Para isso, faz uso da interessante imagem da bocca di leone, espécie de caixa de correio com abertura em forma de boca de leão em que todas as queixas, denúncias, súplicas da população anônima e com destinatário incerto ou indefinido se acumulavam em Veneza, em um amontoado que permanecia ali guardado, adormecido porém iminentemente explosivo em sua potência cumulativa. Trata-se, para ele, de um reservatório ou de uma reserva em silêncio, já que "o
que nele se produz de prece ou de denúncia remetidas lhe vem de fora e, se ele as acumula em si, é para dormir sobre elas" (LACAN, 1960/ 1998, p.666), o que cria certa ausência. Para Lacan, a pulsão não é toda significante, mesmo sendo toda estruturada.

Anteriormente ao nascimento de qualquer um, sua existência já é sustentada por aquilo mesmo que estrutura o Isso, a articulação significante. "Um pólo de atributos, eis o que é o sujeito antes de seu nascimento (e talvez seja sob o acúmulo destes que irá claramente sufocar). De atributos, isto é, de significantes" (LACAN, 1960/ 1998, p.659), diz Lacan. Estes três ditos lacanianos são efeitos do significante e de sua articulação.

Ao definir estrutura a partir da cadeia significante, e não por uma forma geométrica qualquer, Lacan situa a experiência do sujeito no campo em que isso fala dele. É um modo de estrutura produzido pelos "efeitos que a combinatória pura e simples do significante determina na realidade em que produz" (LACAN, 1960/ 1998, p.665) e que podem retornar, podem dar lugar ao sujeito.

"Quando a linguagem se intromete na história, as pulsões têm maisé que proliferar, e a pergunta (se houvesse alguém para formulá-la) seria, antes, saber como o sujeito há de encontrar nela um lugar qualquer. Felizmente, a resposta vem, antes de mais nada, no furo que ele cava para si na linguagem" (LACAN, 1960/1998, p.668).

Desta forma, a psicanálise reconhece haver um lugar para o excluído, que não é a inclusão, pois "afirma o sujeito sob o aspecto do negativo, instalando o vazio em que ele encontra seu lugar" (LACAN, 1960/ 1998, p.672), chamado por Lacan de furo cavado, intervalo entre couro e carne, ausência, corte. Ao mesmo tempo, Lacan chama este lugar de "lugar de Mais-Ninguém" (LACAN, 1960/ 1998, p.674), indicando o nada anterior à criação de um lugar e a contingência ligada a esta criação.

Para Lacan (1960/ 1998), enquanto reservatório das pulsões, há espaço no Isso para uma falha produzida pelo sujeito em que as outras instâncias, eu e supereu, acabam se acomodando. Este vazio criado foi chamado por ele de pulsão de morte. Portanto, ele sugere que este lugar, na verdade preparado para o sujeito, "sem que ele o ocupe e o Eu que ali vem se alojar" (LACAN, 1960/ 1998, p.674), se torna um acampamento para o eu e o supereu. Em suas palavras:

"Essa ausência do sujeito, que no Isso não organizado produz-se em algum lugar, é a defesa a que podemos chamar natural, por mais marcado pelo artifício que seja esse círculo queimado na mata das pulsões, por ela oferecer às outras instâncias o lugar em que acampar para organizar os seus. Esse lugar é justamente aquele a que toda coisa é chamada para ser lavada da falha, que ele possibilita por ser o lugar de uma ausência: é que toda coisa pode não existir" (LACAN, 1960/1998, p.673).

Neste escrito, Lacan (1960/ 1998) reitera o desconhecimento em que se situa o eu por acreditar-se 'senhor em sua própria casa', parafraseando Freud (1917/ 1996). Além disso, Lacan (1960/ 1998) identifica haver uma função em tal desconhecimento, sendo o eu resistente a sabê-lo. Neste sentido, considera o desconhecimento uma defesa, mencionada na passagem acima como uma defesa à ausência em que se encontra o sujeito.

É, ao mesmo tempo, esta ausência do sujeito e a defesa do eu contra ela o que possibilita às outras instâncias armar acampamento no "círculo queimado na mata das pulsões" (LACAN, 1960/ 1998, p.673), construindo casa no Outro. Este lugar é aberto pelo sujeito, no furo que cava para si, mas mobiliado pelo eu, diz Lacan: "a função do Eu impõe ao mundo em suas projeções imaginárias e os efeitos de defesa que elas retiram de mobiliar o lugar onde se produz o juízo" (LACAN, 1960/ 1998, p.677). E ele se pergunta, então, como o sujeito poderia retornar para casa ou encontrá-la, constituíla.

"Mas, esse lugar do sujeito original, como haveria este de encontrá-lo na elisão que o constitui como ausência? Como reconheceria ele esse vazio como a Coisa mais próxima, mesmo escavando-o de novo no seio do Outro, por nele fazer ressoar seu grito? Antes, ele se comprazerá em encontrar ali as marcas de resposta que tiveram o poder de fazer de seu grito um apelo. Assim ficam circunscritas na realidade, pelo traço do significante, as marcas onde se inscreve a onipotência da resposta. Não é a toa que essas realidades são chamadas de insígnias" (LACAN, 1960/ 1998, p. 686).

Para responder, Lacan (1960/ 1998) sugere justamente certo retorno de elementos da estrutura significante, referindo-se aos que marcaram a transformação da necessidade em demanda. Estes seriam encontrados com alívio pelo sujeito ao encontrar seu lugar no Outro. Lacan (1960/ 1998) passa, então, a falar da análise como um caminho na via deste retorno, possibilitando a construção de uma casa para o sujeito. Neste caso, o analista toma de empréstimo o lugar do Outro, ao tornar-se lugar da fala do sujeito.

Desta forma, o retorno de elementos da estrutura significante, mesmo sendo um retorno para um lugar nunca habitado, poderia constituir, pela primeira vez, um lugar no Outro, que poderia ser chamado de casa. O trabalho clínico na desinstitucionalização pode ser um disparador deste retorno por tratar-se do acompanhamento às questões de moradia, por muitas vezes incluir em sua prática uma casa concreta, por questionar o que cada um precisa para sentir-se em casa, sentir um lugar como familiar. Pode aparecer, então, o lugar que o sujeito (não) teria no Outro, passando, por efeito de uma suplência a ter, ou seja, a casa pode exercer de forma metafórica esta função.

____________________________________________________________________________________

Referências Bibliográficas

ELIA, L. (2000). "Psicanálise: clínica & pesquisa". In: ELIA, L. & ALBERTI, S. Clínica e Pesquisa em Psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, pp. 19-35.

FREUD, S. (1917/ 1996). "Fixação em Traumas – O Inconsciente". In: Volume XVI, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, pp.281-292.

FREUD, S. (1919/ 1996). "O Estranho". In: Volume XVII, Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, pp.235-273.

LACAN, J. (1960/ 1998). "Observações sobre o relatório de Daniel Lagache". In: Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, pp.653-691.

LACAN, J. (1964/ 1985). O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

LACAN, J. (1966/ 1998). "A Ciência e a Verdade". In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,pp. 869- 892).

LACAN, J. (1976-1977). Le Séminaire, livre 24: L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre. inédito, documento de trabalho não comercializado da Association Lacanienne Internationale. Paris. MS. (2003). Programa De Volta para Casa – liberdade e cidadania para quem precisa de cuidados em saúde mental.
Cartilha.

 
  Arquivo em PDF do artigo  
 
Revista N° 15 .
. Editorial .
. Sumário .
. Artigos .
 
. Corpo Editorial .
. Instruções aos Autores .
. Números Anteriores .
. Indexadores .
Topo da página
CliniCAPS - Todos os direitos reservados © - 2006