ISSN: 1983-6007 N° da Revista: 03 Setembro de 2007 à Dezembro de 2007
 
   
 
  Conexão Cultural  
     
  . A construção da identidade do psiquiatra

 
     
 

Magda Campos

 
  Psiquiatra, psicanalista, escritora.
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. Se partirmos da estrita definição encontrada no dicionário diremos que o termo identidade refere-se a uma absoluta paridade, a saber, à qualidade de uma coisa ou pessoa de ser perfeitamente igual a outra; diremos do conjunto de circunstâncias que fazem que uma pessoa seja determinada aquela e não outra; noutras palavras, diremos que a identidade de uma pessoa se refere à consciência persistente de si mesmo. Portanto, dizemos que a identidade de um psiquiatra deve, primeiro, dizer de sua persistente consciência de ser médico, e a seguir, ser médico especialista no tratamento da doença psíquica. Aqui, a escolha da expressão ‘doença psíquica’ justifica-se pelo fato de se encontrar o prefixo “psi” na base da construção da palavra que nomeia este profissional médico: “psi – quiatra”, cujo saber tem por alicerce a “psico – patologia”.

. De origem grega, PSIQUÊ traduziu-se por ‘alma’, passando pelo latim ânima, do qual derivou, por exemplo, ‘ânimo’ e ‘animado’ em português. Corriqueiramente, todo o aparelho mental do indivíduo – incluindo emoções e espírito – é denominado aparelho psíquico, querendo com isso dizer que ‘psíquico’ é aquilo que se opõe ao físico; ou seja, coloquialmente, psíquico é tudo aquilo que não é somático, ou, ainda, aquilo que se opõe e/ou se apõe ao corpo. Nesta simplificação, vale dizer que psíquico é o reino dos sentidos, dos símbolos, dos significados; numa palavra, o domínio da linguagem. Pois bem, o domínio dos símbolos e dos significados é necessariamente entretecido com e pelo ambiente sócio-físico-cultural. Desde aí, tem-se que o psíquico diferencia-se normalmente no tempo e no espaço, assim sendo que a condição psíquica normal da criança difere da condição normal do adolescente, do adulto e do idoso; difere de região geográfica para região geográfica, ao longo da história sociocultural de uma mesma região ou de uma determinada comunidade e difere ainda conforme as contingências biográficas de um dado indivíduo. Assim, só se pode falar em “psiquismo construído” isto é, que se faz continuamente, sem fechamento, sem término, e não se pode falar em “psiquismo dado”. A normalidade psíquica – a personalidade normal - comporta, portanto, um amplo, diversificado, e até mesmo contraditório, espectro de expressões e modos.

. Apreender e traduzir para o campo do saber médico a manifestação psíquica ‘anormal’ é a tarefa que se propõe o psiquiatra; quer dizer, encontrar a patologia no anormal. Por isso se faz absolutamente necessário dizer que este trabalho exigirá continuado esforço e dedicada aplicação ao estudo permanente das possíveis e potenciais produções do psíquico, que, como se disse, não se encerra. Portanto, se o psiquiatra pretende apreender a anormalidade na história do indivíduo e traduzi-la como ‘doença’, terá que se interessar por arte, ciência, trabalho, espírito, sentimentos, sentidos, sociedade, beleza, dor, coragem, violência, começos, fins e etc. Enfim, por tudo aquilo que o homem tece e pelo qual é tecido. Tarefa gigante; na verdade, titânica.

. Isto me leva a apontar um ponto, ao modo de paradoxo, para reflexão: contrapondo-se à idéia de construção, já explicitada, me pergunto por um núcleo mítico, presente na identidade do médico, e em específico do psiquiatra, do qual creio ser necessário que se tenha consciência persistente, imprescindível para o exercício de uma prática segundo a ética que a dignifica; numa palavra, para o exercício profissional.

. Uma pesquisa rápida sobre que o dizem alguns dos tratados de psiquiatria , ao longo dos anos, sobre a identidade do psiquiatra, dos primeiros tempos da disciplina, isto é, começo do século XIX, com Pinel (1802), passando pelo seu definitivo estabelecimento no decorrer daquele século, e atravessando as diversas facções – ou simples frações? – que a marcaram durante o século XX – a psiquiatria positivista, a psiquiatria social, a psiquiatria dinâmica, a biológica, a neuropsiquiatria, etc – dois aspectos se ressaltam sempre:

. 1. O esforço permanente para situar de maneira inequívoca a psiquiatria num domínio estrito chamado saber médico; saber entendido como um campo específico da ciência, em si mesmo definido; portanto, que prescinde de outros aportes para se instituir. Tamanho esforço demonstra por si mesmo a dificuldade de uma inequívoca determinação, pois, apesar do empenho, nenhum dos tratados deixa de contemplar a confluência com os campos da sociologia, da psicologia, da história, da arte, da antropologia, da religião, etc., e de modo especial, da filosofia, que a prática médica psiquiátrica impõe. Assim, ao lado do esforço para definir os limites médicos da prática psiquiátrica encontramos os “deslimites” da doença psíquica, obrigando o psiquiatra a freqüentar outros domínios do saber, fora das margens do chamado saber médico. De qualquer maneira, é impossível historiar a medicina e, portanto, a identidade do médico, sem passar noutros caminhos do conhecimento e chegando mesmo às origens, a saber, à mitologia, pois, a persona do médico já se faz presente nos primeiros registros da história do homem.

. 2. Por outro lado, também é onipresente nos tratados gerais de psiquiatria a referência à grande quantidade de enfermidades manifestadas por fenômenos somáticos que não podem ser completamente explicados, e tratados, pelo estrito saber médico, exigindo explicações e práticas advindas de outros domínios explicativos da vida do homem.

. Enfim, e ao fim de exaustivos debates, vimos – e revimos – os tratados de psiquiatria se valer dos pensamentos de profissionais não médicos, num interessante círculo, para estabelecerem, e justificarem, o estatuto médico de “cientista puro”. Citemos, por exemplo, o recente “O que psiquiatras fazem”, de 2007, dos eminentes psiquiatras Dr. Carol Sonenreich e Giordano Estevão: “A ciência, considerada como projeto que se realiza progressivamente, é tão subjetiva e psicologicamente condicionada que qualquer outra realização humana”. (Albert Einstein).

. Encontramos a figura do médico nos mitos gregos, fonte inequívoca da cultura ocidental, de uma forma generalizada, permeando múltiplos episódios. Verifica-se que sua persona tem as seguintes marcas constantes que a caracterizam: são filhos de uma relação especial e/ou portadores de uma diferença, o que lhes causa uma existência singular [por exemplo, frutos da união de um imortal com um mortal, resultado de um rapto, uma violação, ou são cegos, etc.]; têm sempre uma íntima relação com a natureza, em alguns casos havendo crescido livremente no campo por terem sido abandonados ao nascimento, sendo alimentados por animais (caso de Asclépio, em uma das versões de seu mito) ou adotados (o mesmo Asclépio, na outra versão); e, em especial, todos têm o dom de adivinhação, da previsão, adquirido justamente naquele contato com a natureza ou por dádiva de um deus; o poder da adivinhação vem do aprendizado da “leitura” dos fenômenos naturais, da escuta da linguagem dos animais (destaque para as serpentes e os pássaros), do entendimento dos sonhos e da previsão de eventos extraordinários. Outra característica dos “médicos míticos” é terem suas próprias lendas entrecruzando entre si: o primordial titã Prometeu, primeiro adivinho, encontrará Quíron, que cuidará de Asclépio, que ensinará a toda uma geração (os asclepíades), na qual se destaca Hipócrates...

. Para Jean-Pierre Vernant, o médico, juntamente com o estrategista e o sofista, representa a genuína estrutura da mente grega, a saber: privilegiam a intuição, a esperteza (no sentido da métis, como veremos), a capacidade de prever, a flexibilidade de espírito, a atenta vigilância, uma grande quantidade de habilidades artesanais associadas a uma experiência de vida longa. Isto é, são homens que souberam prolongar a própria vida. “Eles se aplicam a realidades fugazes, movediças, desconcertantes e ambíguas, que não se prestam nem a medição exata nem a cálculos precisos, nem a raciocínio rigoroso”.

. De fato, a história de Asclépio, o reconhecido deus da medicina, carrega os mitemas básicos comuns aos mitos fundamentais do panteão grego. Fruto da paixão de um imortal, o deus Apolo, pela mortal Corônis, Asclépio foi retirado por seu pai do ventre da mãe antes que ela fosse fulminada por ele, o pai enfurecido pois que Corônis se apaixonara, ainda grávida, por um mortal.

. Numa das versões, Apolo entrega Asclépio aos cuidados do centauro Quíron. Este, se liga à descendência de Aéolo, um dos filhos de Heleno, o genearca dos helenos. O mítico Aéolo era devoto de Posídon, deus do mar, cujo culto se relaciona à cavalariça, pois este deus comunicava-se com os mortais sob a forma de cavalo, fato que deu origem ao povo metade homem, metade cavalo, a saber, aos famosos centauros. Estes são também frutos de alguma união deus/homem e geralmente aparecem nas lendas com um caráter selvagem; são impulsivos e insensatos, exceção feita a Quíron e Folo, que se destacam por apresentarem exatamente qualidades contrárias: são especialmente inteligentes, cultos, misteriosos, sábios, dóceis, destacando-se como mestres dos heróis gregos, inclusive do grande Aquiles.

. A lenda de Quíron se cruza de interessante maneira com a de Prometeu. Na história deste titã pode-se ler o mito da criação do homem; melhor dizendo, da instauração da condição humana marcada pelo trabalho, sexo, sacrifício e dom. A artimanha do titã Prometeu – conhecido como o grande protetor dos mortais - leva Zeus a criar Pandora, o belo mal, como presente “para ti e para os homens vindouros!”. Antes da competição do titã com Zeus, os homens eram autóctones, brotavam da terra e conviviam suavemente com os deuses, compartilhando de uma mesma linguagem, ou melhor, sem necessidade de uma. Com Pandora, a primeira fêmea, se instaura definitivamente a condição humana: ela é fabricada pela mistura do elemento terra ao elemento água; é cópia, mas também é original ao inaugurar a raça das mulheres; recebe um dom de cada morador do Olimpo; tem a fala, que permite a comunicação própria da raça dos homens, mas que também permite enganar, persuadir, atormentar; é, ao mesmo tempo, o belo e o mal.

. “Filho de Jápeto, sobre todos hábil em tuas tramas, apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhas; grande praga para ti e para os homens vindouros! Para esses em lugar do fogo eu darei um mal e todos se alegrarão no ânimo, mimando muito este mal.” (...) “Fala o arauto dos deuses aí pôs e a esta mulher chamou Pandora, porque todos os que têm Olímpia morada deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão”.

. Com Pandora, surgem, portanto, a necessidade da reprodução sexuada e do trabalho pelo alimento para garantir a espécie (ela traz o jarro com as sementes). É o momento mítico do surgimento da “techné” (produto das artes) perante a natureza dada (physis). Com ela, se pode dizer, surge a cultura, e o mal estar.

. Podemos ler ainda no mito Prometeu/Pandora uma narração a mais sobre o elemento essencial da estrutura mental propriamente grega, a saber, a métis, ou prudência, ou ainda, a inteligência astuciosa, isto é, ‘nada em excesso’, pois, haverá sempre a medida certa. Quando personificada, Métis surge como a primeira esposa de Zeus, sendo engolida por este, quando Prometeu lhe revelou que ela lhe daria o filho que o destronaria. Diz-se, portanto, que Zeus traz a métis dentro de si. E de Prometeu, diz-se que já em seu nome traz a métis retorcida – é ankylométis -, é habilidoso na arte de tramar, simboliza o princípio da intelectualização, já inscrita em seu nome. Tem em Epimeteu, seu irmão, o reverso. Epimeteu, apesar o prévio aviso de Prometeu, recebe o presente de Zeus – Pandora – pois só compreende os fatos depois de terem acontecido. Contrariamente, Prometeu tem a pré-ciência, é adivinho, elemento que o coloca na linhagem da persona mítica do médico. Ao ser punido definitivamente por Zeus, pelo atrevimento de querer disputar com ele, o titã é acorrentado a um rochedo com uma águia a lhe comer o fígado, o qual regenera eternamente; mas Hércules, dileto filho mortal de Zeus, flechou a águia libertando o titã, e Zeus, feliz com a habilidade do filho, permitiu que Prometeu ficasse com um anel amarrado ao tornozelo com um pequeno pedaço do rochedo, para que sua sentença não fosse retirada. Outro ardiloso arranjo, apenas. Hércules, inadvertidamente, havia ferido também a Quíron, que desejou morrer por não suportar a dor do ferimento pois as feridas causadas pelas flechas do herói eram incuráveis; como era imortal, recebeu o favor de Prometeu que tomou para si a imortalidade do centauro, e então Quíron morreu. Tudo se deu novamente com a permissão de Zeus, grato ao titã que lhe havia revelado que o seu filho com Métis lhe tiraria o trono; este oráculo levou Zeus a engolir Métis que estava grávida. Esta é a origem de Atena, deusa da justiça e protetora dos artesões, nascida da própria cabeça do grande Zeus. Os poderes de presciência de Prometeu aparecem em vários outros mitos. Antes de ganhar o direito de morrer, pela bondade de Prometeu, Quíron foi mestre de muitos heróis, incluindo Aquiles e Jasão; ensinava música, a arte da guerra, a moral, a caça e a medicina. Asclépio lhe foi entregue pelo próprio Apolo, depois de fulminar Corônis. Numa outra versão, depois de seduzida pelo deus, Corônis abandona o filho no campo, onde ele é alimentado por uma cabra e cuidado por um cão, e, posteriormente, recolhido por um pastor, dono dos animais. Asclépio, de qualquer maneira, cresce entre os animais, e leva sempre consigo uma serpente. Torna-se especialmente sábio, muito capaz de curar todos os males e, inclusive, de ressuscitar os mortos. Tamanho poder suscitou a preocupação de Zeus com a ordem do mundo, que então, o fulminou. Para se vingar, Apolo matou o Ciclope, e Zeus, ao modo de reparação, concedeu um lugar no Olimpo, portanto entre os deuses, a Asclépio, que se tornou a constelação conhecida como Serpentário. O culto ao filho de Apolo espalhou-se pela Grécia, tornando-se extremamente popular. Os templos de Asclépio eram uma espécie de sanatório religioso ou ainda, um balneário sagrado. Após os rituais de higiene, os pacientes deviam ficar de repouso até vir o sono; então, em sonhos eram visitados por Asclépio sempre acompanhado pela serpente, ou pelo cão. (note-se que o espírito de cão é um dos dons recebidos por Pandora: capaz de absorver, com o seu ardor alimentar [sua fome de cão], toda a energia do macho). Depois do repouso e da visita, o doente relata o sonho ao sacerdote – o asclepíade – que, interpretando-o, prescreve-lhe o tratamento. Em geral, são efusões de ervas, banhos, repouso e regras alimentares e de conduta. A serpente reaparece de modo especialmente interessante na história de outro famoso adivinho médico, o mítico Melampo. Este adquirira os dons da adivinhação pela gratidão dos filhotes de uma serpente que, encontrada morta por Melampo, recebera dele os funerais e criara seus filhotes. Estes, então, lhe purificaram os ouvidos com a língua, dando a ele o dom de ouvir a linguagem dos animais, em especial dos pássaros, obtendo ele, desta maneira, o dom da previsão. Melampo surge realizando várias curas em diferentes mitos, incluindo o das filhas do rei de Argo, que atingidas por uma loucura coletiva, vagavam pelo Peloponeso julgando-se transformadas em vacas.

. São estes os elementos do núcleo mítico da identidade do médico: conhecer a linguagem geral da natureza, prevendo e prevenindo os desvios de sua ordenação geral; e nos casos em que os desvios já se deram, conduzir de volta ao caminho natural, se deixando orientar pelos sinais da própria natureza.

. Concluindo: a identidade do médico psiquiatra constrói-se permanentemente, na edificação interminável de um saber capaz de traduzir os símbolos e significados, ao longo do tempo, da relação do homem consigo mesmo, com os demais e com a natureza. Esta relação exige tradução porque, rebaixado à condição de partido – sexuado – e de dependente do trabalho para se alimentar, o homem se viu carente de uma linguagem, para que pudesse se fazer entender. Submetido pois a uma empresa de esforço continuado, capaz de derrubar o ânimo e levar à doença.

. Mas não há construção sólida possível se não se começa pelo firme alicerce do respeito à linguagem geral da natureza, na qual, o homem deve se reconhecer inscrito, se almeja um bom estado de ânimo. Este reconhecimento só se expressa no comportamento sob o domínio da métis, isto é, da prudência inteligente e diligente. Do contrário, seremos apenas “Néscios que não sabem quanto a metade vale mais que o todo, nem quanto proveito há na malva e no asfódelo”.

 
     
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